Poucos eventos dentro da medicina são tão aguardados quanto a reunião anual da Sociedade Americana de Oncologia Clínica, a Asco. Neste ano, mais de 40 000 profissionais de saúde se reuniram em Chicago para compartilhar e discutir os grandes avanços e descobertas na luta contra o câncer, conjunto de doenças que, a depender do país, é a primeira ou a segunda principal causa de mortes. Em uma das sessões mais disputadas entre os conferencistas, a pesquisa que estava prestes a ser apresentada não tinha como alvo uma nova droga, um exame ultrapreciso ou um sofisticado método de edição do DNA. O remédio que viria a atrair a atenção dos especialistas não envolvia tanto segredo, tampouco tanta tecnologia. Era a atividade física.
Pela primeira vez em um congresso médico dessa magnitude, foram publicadas evidências robustas do poder do exercício na recuperação de um câncer. O estudo em questão, além de ser apresentado na Asco, ganhou as páginas de um dos mais renomados periódicos científicos, o The New England Journal of Medicine. Ao longo de mais de uma década, estudiosos americanos recrutaram cerca de 900 pacientes em tratamento contra o câncer de cólon (parte do intestino) com histórico de sedentarismo. Enquanto metade do grupo participou de um programa de atividades físicas estruturado, com treinos personalizados e orientação profissional, a outra metade passou pelo acompanhamento-padrão, com recomendações gerais sobre estilo de vida. O experimento, batizado de Challenge (“desafio”, em inglês), revelou que a prática regular de exercícios após se completar o ciclo de quimioterapia foi capaz de reduzir em quase 30% o risco de reincidência da doença — que não é algo incomum — e em 37% a probabilidade de morrer uma década depois do tratamento oncológico.
Os resultados foram intensamente celebrados. Respaldam, aliás, uma mudança de paradigma no enfrentamento dos tumores. “Se antes os exercícios tinham um papel coadjuvante, hoje eles passam a ser vistos como uma etapa essencial do tratamento”, diz o educador físico Paulo Cezar Santos, pesquisador do IDOR Ciência Pioneira. Acabou o tempo em que o paciente era incentivado a ficar em repouso. Agora, se ele tem condições e recebe o aval do oncologista, pode e deve malhar, trotar, pedalar… Há um crescente corpo de evidências de que as modalidades, sobretudo as aeróbicas — corrida, ciclismo e natação, por exemplo —, são seguras durante o processo e somam forças no combate ao câncer. Se adotados logo após o diagnóstico, antes mesmo de uma cirurgia ou em meio às sessões de químio e radioterapia, os exercícios não só ajudam a debelar a doença, como também a mitigar os efeitos colaterais do tratamento. Enquanto o sistema imune é mobilizado para destruir as células malignas, a liberação de endorfinas e outros hormônios do bem-estar aplaca as dores, a ansiedade e a fadiga. A interação social, por sua vez, afasta outro inimigo cruel: a solidão do paciente.
Embora o comentado estudo divulgado na Asco tenha provado o efeito positivo em pessoas com câncer de intestino, já existem bons indícios de que a atividade física tende a beneficiar todo paciente oncológico em condições físicas e psíquicas de suar a camisa. Tanto é que os principais guias com diretrizes médicas na área, caso do elaborado pelo Instituto Nacional de Câncer (Inca), avalizam a prática de exercícios aeróbicos e resistidos (os de fortalecimento muscular) como parte do tratamento. Recentemente, esse papel precioso foi explorado na batalha contra o câncer de próstata, o mais comum entre os homens. Sujeitos com esse diagnóstico que mantêm um estilo de vida ativo correm um risco 30% menor de morrer do que os sedentários. No câncer de mama, o mais frequente em mulheres, pesquisas estimam que botar o corpo em movimento diminua em 43% a chance de recorrência do tumor e em 46% a mortalidade precoce. “Esse é um tema cada vez mais presente nos congressos médicos”, diz o oncologista Henrique Helber, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, que esteve presente na Asco. “As atividades têm que ser prescritas porque estão associadas a uma melhor resposta ao tratamento e a um menor risco de retorno da doença.” Aliás, cabe sublinhar o que significa o termo “prescrição” nesse contexto. Há um entendimento cada vez mais consensual entre os experts de que não adianta o médico sugerir ao paciente que faça exercícios na rotina de forma genérica. Ainda mais diante de um problema como o câncer, é preciso trazer recomendações específicas, se possível personalizadas e estabelecidas ao lado de um educador físico.
Juntar profissionais e pacientes para mudar a realidade de quem vivencia um câncer por meio do exercício é o que mobiliza também trabalhos de fôlego como o Remama, um programa da USP que viabiliza a prática supervisionada de remo nas raias da Cidade Universitária paulistana a mulheres com tumores de mama. O projeto, hoje sob a batuta do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp), já tem mais de uma década e foi inspirado numa iniciativa canadense revolucionária. Nos anos 2000, ainda existia a crença de que pacientes operadas devido à doença no seio não podiam fazer movimentos intensos com o braço devido aos edemas e outras reações da cirurgia. Foi aí que o médico canadense Don McKenzie decidiu tirar a prova essa história. Ele criou um programa de remo para mulheres com câncer de mama e descobriu que os exercícios não só não pioravam a condição como promoviam fortalecimento, reduziam sintomas como inchaço e alimentavam um senso de comunidade. A ideia vingou e, no Remama em São Paulo, hoje existem mais de cinquenta mulheres matriculadas. “Antes, as pacientes costumavam terminar o tratamento achando que nunca mais poderiam utilizar o braço, como se tivessem sido amputadas”, diz a médica Elisângela Marinho, chefe da equipe de fisiatria do Icesp. “Hoje, não só encontram no exercício uma maneira de alcançar a reabilitação, como também contam com um grupo onde podem compartilhar experiências em comum.”
Os especialistas ressaltam que a incorporação das atividades, sejam elas individuais ou coletivas, deve ser feita de maneira individualizada, gradual e progressiva. Independentemente da etapa do tratamento, é preciso começar aos poucos, primeiro para garantir funcionalidade, ou seja, para que determinados grupos musculares sejam devidamente habilitados, e depois incrementando o ritmo, a força ou a resistência. Nesse sentido, alternar sessões de trote ou corrida com musculação ao longo da semana é particularmente bem-vindo, assim como não esquecer dos exercícios que atuam na flexibilidade e no equilíbrio. A missão é preservar os músculos, o condicionamento cardiorrespiratório e a energia para superar um período por vezes árduo em meio aos tratamentos.
A bem da verdade, as atividades físicas nem deveriam entrar em cena apenas quando se recebe um diagnóstico desses. Deveriam fazer parte do cotidiano de qualquer cidadão — e desde a infância. Inclusive pelo seu papel na prevenção ao câncer. Essa é uma realidade desafiadora no país. Dados do IBGE apontam que quase cinco em cada dez brasileiros são menos ativos que o recomendado pela OMS — em geral, a entidade prega que as pessoas façam ao menos 150 minutos de exercícios moderados por semana. Reverter esses números é uma questão de saúde pública, haja vista que o sedentarismo e a obesidade que vem a tiracolo estão por trás de inúmeras doenças crônicas. Os tumores não são exceção. Estudos com seres humanos indicam que indivíduos ativos correm um risco 20% menor de desenvolver um câncer ao longo da vida. Em experimentos com animais, aqueles submetidos a treinos intensos são menos propensos a ter a doença e encaram uma redução de mais de 70% na perspectiva de ver o problema se espalhar pelo corpo.
Do ponto de vista fisiológico, hoje se sabe que os exercícios são úteis porque fazem com que todo o organismo opere em seu ápice, mantendo as funções metabólicas, hormonais e imunológicas tinindo. Porém, isso só persiste se outros hábitos saudáveis fizerem parte do roteiro. Ou seja, uma alimentação equilibrada, um sono adequado e o gerenciamento do estresse não só potencializam os resultados das horas no parque ou na academia como evitam que elas sejam abandonadas ou virem o estopim para lesões. A própria biologia assina embaixo da prescrição de exercícios. Ora, durante milhares de anos, nossos ancestrais viviam em movimento para ter o que comer. É como se fôssemos programados geneticamente para se mexer. Talvez isso explique o potencial da atividade física para prevenir ou ajudar a tratar uma coleção de males tão ampla e diversa como a que assombra a humanidade — e engloba do próprio câncer a doenças cardiovasculares, psiquiátricas e neurológicas. Não há a melhor ou a pior modalidade. “A atividade física ideal é aquela que nos faz bem e pode ser mantida no longo prazo”, afirma Marinho. Pode ser um jogo de futebol com os filhos e netos. Uma aula de ioga. Remadas ao sol raiar. Ou uma sessão na esteira. O importante é suar. E, como agora documenta a ciência, esse hábito pode ter a força de um remédio.