Sonhos desfeitos: ‘As pessoas estão desaparecendo. Estamos apavorados’, conta imigrante brasileira nos EUA

13 de julho de 2025 às 08:25
RELATO

Foto: reprodução

Por redação com O Globo

"Sou empresária e trabalho com moda e cosméticos, tenho empresas no Brasil e em Nova Jersey, onde vivo de forma legal com minha família. Embora a comunidade brasileira estivesse apreensiva desde janeiro, quando o presidente Donald Trump retornou à Casa Branca, tínhamos fé de que só seriam levadas de nosso convívio pessoas com problemas sérios na Justiça. Era o que a propaganda republicana nos garantira. Mas, a partir do fim de maio, as pessoas começaram a ser pegas nas ruas de Newark pelos agentes da Imigração de forma aleatória — bastava que fossem fisicamente parecidas com a ideia que eles tinham do que é um brasileiro. E elas não reapareciam mais.

No dia 4 de junho, o marido de uma funcionária recebeu uma mensagem no celular. Aparentemente, era de uma ONG que ajudava pessoas sem documentos a encontrar maneiras legais de continuar trabalhando provisoriamente aqui. Era um pedido para que ele fosse a um determinado local para participar de uma reunião com o objetivo de agilizar o processo de regularização de sua situação nos EUA. O endereço não era o da Corte de Imigração, e aquilo o deixou ressabiado. Ele consultou o advogado que cuidava do caso dele. O especialista o alertou sobre a possibilidade de ele ter recebido um ultimato para sair do país. Lamentou não poder acompanhá-lo e o aconselhou a ir para entender do que se tratava. Ele concordou, afinal a ONG sempre o ajudou. Mas, ao entrar no local informado, contou depois, já da prisão, percebeu que não tinha ninguém da ONG. Eram todos agentes da Imigração.

Escritório de fachada

O marido da minha funcionária tem 27 anos e trabalhava na área de beleza e estética. É uma pessoa muito querida na comunidade, evangélico, orador na igreja, trabalhador dedicado. Eles chegaram aqui há um ano e meio, após se casarem em Minas Gerais. Do escritório falso, ele ainda conseguiu enviar para a mulher a mensagem de que tinha caído numa armadilha. Também a alertou de que provavelmente não iria mais voltar para casa. Não iria mais vê-la tão cedo.

Como ele não tinha ficha na polícia, tínhamos esperança de que seria enviado rapidamente de volta para o Brasil. A deportação seria uma dureza, mas depois resolveríamos como a família deles, que inclui um adolescente, filho da minha funcionária, e enteado dele, se reuniria. Mas não foi o que aconteceu.

Entre idas e vindas às cortes migratórias, minha funcionária conseguira o direito de seguir trabalhando aqui por um período de quatro anos. Algo que nunca foi estendido ao marido dela. Nunca soube o porquê da diferença. A próxima audiência dele estava marcada para o fim do ano. Mesmo assim, ele caiu na armadilha. Ninguém sabia na comunidade da existência do escritório de fachada. De lá, ele foi levado para uma delegacia e depois para uma prisão, onde estão vários outros imigrantes sem documentos, alguns com histórico criminal e transtornos mentais.

Na delegacia, a confusão era enorme. Como ele não fora registrado, nos mandaram voltar para casa. Ele nos ligou depois e explicou que estava em uma prisão, perto do Aeroporto Internacional de Newark, pois ouvia o barulho dos aviões. Descobrimos o endereço, mas nos repetiram que não havia registro da entrada dele. Ele parecia não estar em lugar nenhum.

Meu marido, que é americano, então entrou no circuito. Obteve a resposta de que o número de funcionários na burocracia federal tinha sido reduzido drasticamente, ao mesmo tempo que chegavam mais e mais imigrantes. Que tivéssemos paciência até ele ser cadastrado no bendito sistema.

Isso demorou mais de 48 horas e aí entramos imediatamente com o pedido de visita. Mas no dia seguinte parte dos presos iniciou uma rebelião e alguns fugiram do presídio. A visitação foi cancelada por tempo indeterminado. Do lado de fora, um policial nos disse ter ouvido que muitos dos detidos sem ficha criminal acabariam soltos, pela falta de verba para deportar tanta gente. Que contratássemos logo um advogado especializado. Fizemos isso. E descobrimos que, no caso dele, não havia possibilidade de fiança ou apelo. Ele tentara entrar nos EUA, anos atrás, pela fronteira, com os pais, foi pego e deportado para o Brasil.

‘A frustração é enorme’

Os sogros da minha funcionária haviam entrado, ele não. Todos agora viviam juntos em Newark, mas não sabíamos do fato, anterior ao casamento dos dois. Reincidente, nos informou o advogado, não tem jeito. A batalha seria outra. A de que ele fosse logo deportado para o Brasil.

Parte substancial da comunidade brasileira em Newark apoiou Trump. Desejava que imigrantes que tivessem cometido crimes comuns fossem embora. Seria bom para os que ficassem. Seria feito com critério. Mas nada disso aconteceu. A frustração é enorme. Meus clientes, quando têm coragem de sair de casa para fazer compras, invariavelmente contam que alguém da família foi pego. Uma tivera há poucos dias o marido detido quando ia para o trabalho, mesmo com medo, para bancar a casa. Ela agora estava sozinha com a filha de 2 meses. As pessoas estão desaparecendo. Todos os dias volto para casa do trabalho passando mal. Estamos apavorados.

Quem virou cidadão e votou em Trump ano passado aqui em Newark se arrependeu. Não tinha coisíssima nenhuma essa diferença de bons e maus imigrantes. A lei do Orçamento que o Congresso aprovou retirou verbas destinadas a projetos sociais e aumentou as do combate à imigração irregular. Muitos começam a entender que foram usados politicamente. Todos nós, imigrantes, com ou sem documentos, passamos a viver regidos pelo medo e a questionar a dimensão do ódio que geramos.

Muitos americanos, como a família do meu marido, nos consolam. Dizem que Trump não os representa. Que não são assim. E não são mesmo. Mas parecem impotentes, e o cenário é desolador. Muitos clientes, com razão, não querem passar pelo mesmo que o marido da minha funcionária. Muitos retornaram ao Brasil com o que tinham no bolso. Outros estão atrás dos US$ 1 mil, além da passagem, oferecidos pelo governo para se autodeportarem, mas temem ser mais uma armadilha. No meu caso, não há solução a não ser otimizar minhas vendas on-line e investir na clientela americana. O verão chegou, e os brasileiros estão escondidos, não gastam com nada além do básico para sobreviver.

Minha funcionária, sem o marido, não conseguiu bancar sozinha o aluguel. Passou a morar no sofá da sogra. Estão todos destroçados. O sonho dela acabou. Ela só quer que ele saia da prisão e volte ao Brasil. Especialmente após ele revelar o que passava lá. Não havia comida para todos. Passava dias apenas com uma porção de pão com mortadela. Havia brigas constantes entre os presos. Quando conseguia contatá-lo, pedia, pelo amor de Deus, para a gente tirar ele de lá o mais rapidamente possível. Procurei os melhores advogados de imigração da Costa Leste dos EUA e todos disseram não haver o que fazer, só esperar.

Notícias, no entanto, não esperam. E elas têm sido especialmente ruins. Outro dia chegou a de que Trump agora poderia legalmente enviar imigrantes para países que não os de suas nacionalidades. Os advogados nos acalmaram, disseram que seria apenas no caso de nações que se recusassem a receber seus cidadãos, jamais o Brasil. Mas como acreditar, a essa altura, que as coisas seriam tratadas ao pé da letra, sem truculência e erros?

A insegurança é tamanha que pessoas com green card também lotam escritórios de advocacia para virar cidadãs mais rapidamente, pois perceberam que o documento não é garantia de nada. Quem precisa dirigir, o faz com medo de se envolver em qualquer acidente de trânsito, por menor que seja, e mesmo que a culpa seja do outro motorista, pois teme ser identificado e deportado. É assim que se vive em Newark. Tenho vontade de chorar ao contar a história dessas duas pessoas que estimo tanto sem saber como terminará. A esperança é de que este momento tenebroso passe, mas quem estiver cogitando, ainda assim, vir para cá sem documento, repense. E dê meia-volta.”

Pesadelo para trás

Na primeira semana de julho, após ficar 30 dias preso, o marido da funcionária da empresa de Newark foi finalmente deportado. Sua mulher enviou uma mensagem ao GLOBO:

“Ele está bem, mas com muito medo por mim, não quer que eu passe pelo que ele passou. Os agentes destruíram a carteira de motorista americana na frente dele, mas o que mais doeu foi não devolverem os pertences que carregava ao ser pego, entre eles nossa aliança de casamento. Quando os questionou, eles só disseram: “Vá embora.” Ele agora busca trabalho no Brasil, e se eu tivesse dinheiro guardado, iria embora já para o acolher. O que mais queria era abraçá-lo de novo. Mas, infelizmente, nos desfizemos de nossos móveis no Brasil quando viemos para cá, teremos de comprar tudo de novo. Se Deus permitir que continue em Newark até o fim do ano, guardarei dinheiro para a gente comprar o básico para nossa nova vida. Aí eu volto. E deixarei o pesadelo americano para trás.”