Defesa de Bolsonaro aponta 8 atos de parcialidade de Moraes no inquérito do golpe
Por redação com Gazeta do Povo
Nas 129 páginas da defesa prévia de Jair Bolsonaro (PL) contra a denúncia da suposta tentativa de golpe, os advogados do ex-presidente dedicaram 99 páginas para apontar problemas da investigação, quase todos relacionados à quebra do dever de imparcialidade pelo ministro Alexandre de Moraes, que conduziu o inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF).
Somente na parte final – cerca de um terço do conteúdo do documento –, a defesa contesta diretamente as acusações feitas contra Bolsonaro pela Procuradoria-Geral da República (PGR), o que poderá ser mais aprofundado caso o STF decida abrir uma ação penal contra ele e torná-lo réu num processo criminal.
Na maior parte da defesa prévia, os advogados apontaram ao menos oito atos e procedimentos de Moraes que indicariam, na visão da defesa, que ele assumiu o papel de investigador e, com isso, se afastou do papel de equidistância que o magistrado deve exercer nessa fase de investigação, conforme a lei e a jurisprudência mais recente do STF.
Os advogados de Bolsonaro querem que Moraes se afaste da relatoria do caso. Nada indica, porém, que o ministro e a Primeira Turma da Corte, onde a denúncia será julgada, atendam a esse pedido. Dentro do STF, a expectativa é de que a denúncia será analisada por Moraes, Cristiano Zanin, Flávio Dino e Cármen Lúcia, que integram o colegiado, ainda no primeiro semestre. Caberá a eles também apreciar as objeções apresentadas contra Moraes na investigação.
1) Inquérito instaurado de ofício
A investigação tem como ponto de partida um ofício enviado ao STF pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em agosto de 2021, para investigar a divulgação, por Bolsonaro, de um inquérito da Polícia Federal sobre uma invasão hacker nos sistemas internos do TSE em 2018.
Na época, um dos signatários do pedido de investigação era o próprio Moraes, que integrava o TSE. Ele mesmo recebeu o ofício do TSE no STF e abriu a nova investigação, por iniciativa própria, sem consultar a Procuradoria-Geral da República (PGR).
“Ao receber notícia de fato, o Ministro Relator determinou de ofício a instauração de investigação, sem encaminhar a informação à Procuradoria-Geral da República. Também de ofício, o d. Ministro Relator determinou a realização de diligências e depoimentos”, registra a defesa de Bolsonaro.
Os advogados alegam que o ato contraria o regimento do STF, segundo o qual “o tribunal não processará comunicação de crime, encaminhando-a à Procuradoria-Geral da República”. Por isso, pedem a nulidade da investigação, uma vez que a PGR não foi consultada antes.
2) Iniciativa probatória
O Código de Processo Penal foi recentemente alterado para instituir no Brasil o chamado juiz de garantias, cujo papel é supervisionar a investigação para proteger os direitos do investigado diante dos órgãos investigadores, como a polícia e o Ministério Público. Nessa alteração, a nova lei proibiu o juiz de ter “iniciativa do juiz na fase de investigação” e de substituir a “atuação probatória do órgão de acusação” – ou seja, não pode exercer o papel da polícia e do MP.
Apesar disso, a defesa de Bolsonaro aponta que, além de abrir de ofício o inquérito, Moraes também determinou, por iniciativa própria e sem consultar a PGR, a tomada de depoimentos para iniciar a investigação – no caso, do deputado Filipe Barros (PL-PR) e do delegado da PF Victor Neves, que conduzia a investigação sobre o ataque hacker ao TSE. O objetivo de Moraes, à época, era descobrir como essa investigação chegou a Bolsonaro.
“A proibição desse tipo de conduta tem razão de ser na nociva contaminação que a atuação em substituição à acusação exerce na imparcialidade daquele que deveria atuar de forma equidistante”, dizem os advogados de Bolsonaro na defesa prévia, pedindo, novamente, a nulidade da investigação.
3) Ausência da PGR no acompanhamento das descobertas
A defesa narra que a PGR também foi afastada do acompanhamento da produção de provas. Ao longo de quatro meses, por ordem de Moraes, a PF produziu 10 relatórios de análise de dados armazenados por Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, em serviços de internet.
Ele foi investigado porque teria auxiliado o ex-presidente na divulgação do inquérito sobre o ataque hacker. A partir daí, durante 10 meses, a PF pediu, em três ocasiões, a quebra de sigilos bancário, fiscal e telemático de dezenas pessoas e nada foi submetido para análise e parecer da PGR, segundo a defesa.
Os advogados de Bolsonaro citam decisão do plenário do STF, em 2020, que condicionou a continuidade do inquérito das fake news (origem de todas as investigações de Moraes contra críticos do STF) ao escrutínio do MP. “A coleta de elementos informativos, em toda e qualquer investigação, para não albergar percepções ou afazeres inconstitucionais, deve ser amiúde acompanhada pari passu [simultaneamente] pelo Ministério Público”, diz a decisão de 2020.
4) Recusa de arquivamento a pedido da PGR
Quando a PGR se manifestou no caso, em 2022, pediu a Moraes o arquivamento do inquérito sobre a divulgação da investigação do ataque hacker ao TSE. O então procurador-geral da República, Augusto Aras, considerou que, como não havia segredo de Justiça sobre a investigação, não havia crime em sua divulgação.
No mesmo ano, pediu também o arquivamento da investigação sobre a devassa realizada nos dados de Mauro Cid. Esse pedido, diz a defesa de Bolsonaro, foi ignorado por Moraes, que mandou a investigação seguir adiante, determinando novas quebras de sigilo de dados fiscais e bancários de diversas pessoas físicas e empresas.
A jurisprudência do STF determina que, quando há pedido da PGR pelo arquivamento, o ministro relator deve arquivar a investigação. Moraes também não submeteu o pedido aos pares e decidiu de forma monocrática pela continuidade da investigação.
“O pedido de arquivamento não foi submetido ao Plenário do Supremo Tribunal Federal, colegiado competente para a sua apreciação na medida em que Jair Bolsonaro era o Presidente da República (cf. art. 5º, inciso I, parte final, do RISTF). Era o caso de indeferimento do pedido? Que se indicasse, então, as razões. O que não se pode admitir, com o máximo respeito, é simplesmente seguir conduzindo a investigação e deferindo quebras de sigilo como se o pedido, com repercussões jurídicas evidentes, não existisse”, diz a defesa de Bolsonaro.
5) Mudança de objeto da investigação
Como a PGR sinalizou, com o pedido de arquivamento, que não havia o que denunciar na conduta de Bolsonaro, a investigação foi mudando de objeto. A devassa sobre os dados de Mauro Cid levou a PF, sempre sob autorização de Moraes, a investigar também gastos da família de Bolsonaro com o cartão corporativo da Presidência e falsificação de cartão de vacina.
Houve até a quebra de sigilo de uma madeireira, suspeita de desviar recursos de emendas parlamentares em contrato com uma universidade pública e uma estatal.
“Verifica-se, assim, que a investigação não possuía mais qualquer objeto ou qualquer finalidade”, diz a defesa de Bolsonaro.
Para a defesa, a continuidade da investigação, para alcançar fatos diferentes dos que motivaram a abertura do inquérito, em busca de condutas criminosas, configura o chamado “fishing expedition” (pescaria probatória), procedimento abusivo de investigação.
A defesa de Bolsonaro aponta que, após a PF apresentar o primeiro relatório sobre os dados de Mauro Cid, concluindo a investigação sobre a divulgação do inquérito sobre o ataque hacker, Moraes pediu relatório mais completo, que acabou se desdobrando em vários, apresentados semanalmente.
“Nenhum desses mais de 10 (dez) relatórios possuía qualquer relação com o objeto da investigação inicial de suposta divulgação de inquérito sigiloso em live realizada pelo então Presidente da República”, reforçaram os advogados do ex-presidente.
6) Ampliação do período de quebra de sigilos
Além de relatórios adicionais, a quebra de sigilos foi estendida no tempo. Moraes determinou que dados bancários de Bolsonaro fossem recuperados até 2018, ano em que ainda nem era presidente. Em outubro de 2022, Moraes determinou que as informações deveriam chegar até setembro, mês anterior.
“A investigação já não se voltava apenas a fatos pretéritos, na medida em que as diligências deferidas eram estendidas para que também alcançassem os fatos até a data da representação policial. Uma investigação de fatos pretéritos e que foi ampliada e transformada em uma espécie de monitoramento”, apontaram os advogados.
7) Compartilhamento de ofício
Outro problema apontado pela defesa de Bolsonaro é o compartilhamento da investigação, de ofício, com outros inquéritos conduzidos por Moraes no STF. “A Lei proíbe que juízes tenham iniciativa probatória na fase de investigação. Isso quer dizer que o juiz não pode compartilhar, de ofício, provas com outros processos sem que seja provocado”, dizem os advogados.
O compartilhamento foi assinado por Moraes em agosto de 2022, e determinava que as informações produzidas alimentassem o inquérito das fake news e o inquérito das milícias digitais. Mais do que isso: laudos que ainda nem haviam sido produzidos também deveriam ser integrados a essas outras investigações, mais antigas.
“Se a prova ainda não foi produzida, se não se sabe o seu conteúdo, é válida a determinação de compartilhamento com outros procedimentos de ‘todos os futuros laudos’ de um afastamento de sigilo telemático de nuvem de investigado?”, questionam os advogados.
“A atuação ativa do magistrado que, sem provocação ou pedido, determina o compartilhamento de provas (já coletadas e futuras) com outros procedimentos também por ele indicados denota o afastamento da posição constitucionalmente demarcada pelo sistema acusatório, contaminando a sua capacidade de atuação equidistante e tendo como consequência a nulidade da diligência determinada com violação à lei”, diz ainda a defesa.
8) Condução da delação de Mauro Cid
Como relator da delação premiada de Mauro Cid, Moraes também teria extrapolado o papel que cabe a um juiz, segundo a defesa. A lei e a jurisprudência do STF estabelecem que ao magistrado compete verificar, no ato de homologação do acordo, a legalidade, regularidade e voluntariedade. Basicamente, avalia se os benefícios concedidos são lícitos, se as negociações com o MP ou a polícia foram corretas e se a pessoa decidiu colaborar de forma espontânea.
No caso da delação de Cid, a defesa aponta dois problemas. O primeiro foi o fato de Moraes ter tentado “salvar” a delação quando, segundo a PGR, ela deveria ter sido anulada.
Isso ocorreu em duas ocasiões: em março de 2024, quando a revista Veja publicou áudios de Cid, em que ele desabafava com uma pessoa próxima dizendo que era pressionado na PF a dar uma versão que corroborasse as hipóteses dos investigadores; e em novembro, quando ele foi chamado a depor após a PF recuperar arquivos que comprometiam o general e ex-ministro da Defesa e da Casa Civil Braga Netto, suspeito de articular um plano para matar Moraes.
Na primeira ocasião, Moraes prendeu Cid, que foi solto após desmentir o teor do áudio. Na segunda situação, a PGR pediu sua prisão e apontou violação do acordo, mas Moraes deu a ele nova oportunidade de esclarecer a participação de Braga Netto.
“Nem a Lei, nem o contrato de colaboração aventam a hipótese de não rescindir o acordo; não há previsão de conferir ao Colaborador uma oportunidade para salvar seu acordo. Cabia apenas decidir pela decretação da prisão preventiva ou não”, diz a defesa de Bolsonaro.
Outro problema, para os advogados do ex-presidente, foi a tomada de depoimento de Cid pelo próprio Alexandre de Moraes, em novembro do ano passado, para detalhar e esclarecer melhor como Bolsonaro e Braga Netto teriam, supostamente, articulado um golpe.
“O que também não era possível – e não se pode admitir – é a tomada de depoimento de colaboração pelo Magistrado. Não há precedente na história desse país de um depoimento de colaboração tomado por um Magistrado, o que, sabemos, só ocorre por ocasião do interrogatório judicial”, diz a defesa.