Lei da Ficha Limpa completa 15 anos com legado sob disputa
Folha
Sancionada em 2010, a Lei da Ficha Limpa completa 15 anos nesta quarta-feira (4) com uma herança em disputa entre propostas no Congresso para flexibilizar regras de inelegibilidade e entendimentos da Justiça Eleitoral que avançam na previsão legal.
Resultado de um projeto de iniciativa popular que obteve mais de 1 milhão de assinaturas, o texto alcançou, em uma década e meia, nomes como o presidente Lula (PT), em 2018, e o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), inelegível até 2030.
Hoje, projetos no Senado e na Câmara dos Deputados visam reduzir, unificar e mudar prazos de inelegibilidade, enquanto órgãos judiciais têm adotado, de outro lado, interpretação expansiva, vetando candidatos acusados de elo com o crime.
O advogado Bruno Andrade, membro da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político), afirma que a Lei da Ficha Limpa, pensada inicialmente para moralizar a política, não cumpriu totalmente as expectativas, resultando em um desencanto da população.
Por um lado, continuaram a existir casos de corrupção e desvios éticos. De outro, a legislação gerou uma judicialização da política, com causas de inelegibilidade e decisões eleitorais cada vez mais dependentes do Judiciário em vez do voto popular, diz ele.
"Isso faz com que haja um aumento de uma crise de representatividade em relação a políticos e a partidos políticos e uma instabilidade maior em municípios, estados, que têm que fazer novas eleições a cada decisão judicial", afirma Andrade.
O deputado federal Bibo Nunes (PL-RS) é dos que se sentem contrariados. Ele é autor de uma proposta que reduz o tempo de afastamento no caso de ações de abuso de poder ou uso indevido de meios de comunicação —tipo de processo pelo qual Bolsonaro foi condenado— de 8 para 2 anos.
"Existe a lei comum, o Código Penal, a Lei da Improbidade Administrativa, muitas maneiras de punir um político corrupto ou um político criminoso que não esses oito anos", justifica o congressista à Folha.
O deputado diz ainda que o Poder Judiciário, principalmente o STF (Supremo Tribunal Federal), está politizado e que o prazo de oito anos da Lei da Ficha Limpa serve apenas para perseguir quem é de direita, citando o caso do influenciador Pablo Marçal (PRTB), condenado nos últimos meses em dois processos —que ainda estão pendentes de recursos.
O debate em torno da proposta engatou no início do ano, impulsionada por aliados do ex-presidente, mas arrefeceu. Bibo Nunes afirma, no entanto, que as discussões vão continuar em curso e acredita na aprovação caso chegue ao plenário.
Outro projeto que tramita no Congresso, proposto pela deputada Dani Cunha (União Brasil-RJ), filha do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, mudaria o início da contagem dos prazos. O PL seria votado em março no Senado, mas foi retirado de pauta.
O advogado e ex-juiz Márlon Reis, um dos idealizadores da Ficha Limpa, afirma não haver por que alterar a lei —em nada. Segundo ele, todos que estão propondo "aprimoramentos" nessa legislação querem, na verdade, reduzir a eficácia dela.
"O principal fundamento de toda a mobilização pela aprovação da lei foi o trabalho para evitar o ingresso nos mandatos eletivos de pessoas que sabidamente mantinham indicativos na sua vida pregressa que desaconselhavam a participação eleitoral", diz ele.
A Ficha Limpa alterou a Lei das Inelegibilidades, a qual já impunha algumas restrições. O que a legislação de 2010 fez foi incorporar a ela mais hipóteses, tornar os critérios mais rigorosos, bem como aumentar os prazos de inelegibilidade, que eram mais curtos, de três anos.
A principal mudança trazida pela nova lei foi o afastamento político após condenação proferida por órgão judicial colegiado, sendo que antes era necessário o trânsito em julgado, ou seja, não caber em tese mais recursos contra a decisão.
No ano passado, a Justiça Eleitoral deu mostras de que pode endurecer ainda mais os parâmetros. Como mostrou a Folha, para barrar acusados de vínculo com organizações criminosas, magistrados começaram a vetar candidaturas até sem condenação.
A ampliação do rigor ocorreu no momento de análise dos registros e teve como base a leitura de uma norma constitucional sobre inelegibilidade. A regra faz alusão à vida pregressa do candidato, probidade administrativa e moralidade.
Ela estabelece, no entanto, que uma lei complementar especificará essas situações e não há nenhuma previsão legal, nem na Lei das Inelegibilidades, nem na Lei da Ficha Limpa, que impeça a candidatura apenas pela condição de réu ou acusado.
Bruno Andrade, advogado e membro da Abradep, afirma enxergar a decisão como um equívoco e uma interpretação excessivamente alargada barrar candidaturas por condutas que não estão previstas na lei.
De acordo com o pesquisador, "como inelegibilidade é uma restrição a um direito político, um direito fundamental, a doutrina mais básica diz que não se interpreta ampliativamente norma jurídica quando ela é restritiva".
O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) depois confirmou a decisão do TRE-RJ (Tribunal Regional Eleitoral fluminense) que indeferiu o registro de candidatura de suspeito de elo com o crime, superando entendimento já estabelecido na própria corte superior.