Russos usaram Brasil como 'fachada' para espionar reserva de gás argentina
UOL
O Brasil foi usado como rota turística por espiões russos que espionaram a Vaca Muerta, importante reserva de gás e petróleo de xisto, na patagônia argentina. É o que mostra o livro-reportagem "Topos", Inflitrados, na tradução livre) recém-lançado pelo jornalista Hugo Alconada Mon. O objetivo, segundo o autor, era "despistar" as autoridades locais e convencer seu entorno de que se tratavam de argentinos fazendo turismo no Brasil.
O caso mais emblemático foi de Artem Viktorovič Dulcev e Ana Valerevna Dulceva, um dos mais importantes casais espiões desde o fim da Guerra Fria, que viveram na Argentina entre 2012 e 2022 e usavam o Brasil como "fachada" turística. A farsa durou até 2022, quando a dupla foi detida na Eslovênia, onde permaneceu presa por mais de um ano e meio. Em agosto de 2024, os dois foram recebidos como heróis, em Moscou, pelo presidente Vladimir Putin, no maior intercâmbio de presos desde a Guerra Fria.
Além do casal, outros espiões russos fizeram turismo no Brasil como fachada, usando nomes como Victor Muller Ferreira (nome verdadeiro Sergei Cherkasov) e José Assis Giammaria (nome verdadeiro Mikhail Mikushin).
Sua primeira entrada no país foi como Martin Hausmaninger e esteve no Rio de Janeiro com esse nome entre os dias 14 e 16 de outubro de 2009. No mesmo ano, entre os dias 17 e 18 de outubro visitou as Cataratas do Iguaçu, em Foz do Iguaçu, na tríplice fronteira (Brasil, Argentina e Paraguai). A segunda entrada de Dulcev no Brasil foi em 2012, já como Ludwig Gisch. Foi com essa identidade que o oficial visitou o Brasil por mais vezes, como em dezembro de 2013, agosto de 2014, julho de 2017 e abril de 2018. Além dele e da esposa, outros espiões russos fizeram turismo no Brasil, usando nomes como Victor Muller Ferreira, Cherkaasov e Di Mmaria, detalhou Alconada ao UOL.
O jornalista argentino explica que o casal de espiões russos visitou o Brasil seguidamente porque era uma forma de "alimentar a fachada de turistas". Eles faziam questão de tirar fotos em símbolos emblemáticos do Rio de Janeiro, como o Cristo Redentor, e nas cataratas, em Foz do Iguaçu. Os espiões cogitaram morar na capital fluminense. "A dúvida era entre se fixar no Rio ou em Buenos Aires", contou Alconada.
O casal optou pela capital argentina. O autor acredita que a decisão sobre a cidade para morar teria vindo de Moscou, já que, na capital argentina, havia, naquele momento, baixo controle migratório, boa qualidade de vida e falhas nos serviços de inteligência. Apesar disso, outros espiões russos usaram o Brasil como fachada ou mesmo como residência, mas alguns terminaram presos, conta o jornalista.
As datas em que Artem e Ana transitaram pelo Brasil como Ludwig Gisch e Maria Rosa Mayer Muños coincidem com o período em que o casal residiu na Argentina, entre 2012 e 2017 e entre 2018 e 2022, no bairro portenho de Belgrano. Eles tiveram dois filhos argentinos, Sofia e Daniel, que nasceram em 2013 e 2015, respectivamente. Em 2018, Ludwig Gisch e María Rosa Mayer Muños chegaram a se camuflar como torcedores da seleção argentina no mundial da Rússia.
Russos espionaram Vaca Muerta
A investigação jornalística descobriu que o casal russo espionou a Vaca Muerta entre 2012 e 2022, período que os dois viveram em Buenos Aires. Segundo Alconada, eles tinham interesse em temas energéticos e mandavam informações a Moscou sobre a reserva de gás e petróleo e fizeram amizades com pessoas que lá atuavam através de informações em cólegio dos filhos desses funcionários.
De acordo com Alconada, o casal levava os filhos, que nasceram na Argentina, a um colégio inglês no bairro portenho de Belgrano e fizeram amizade com os pais dos alunos que interessavam a eles. Entre eles, a mãe de um colega do filho que trabalhava numa empresa petroleira, uma que trabalhava numa empresa de insumos petroleiros e outra que trabalhava em uma empresa de gás. As três mulheres estavam conectadas com Vaca Muerta. "Não era sua missão, mas ofereciam a Moscou todas as informações averiguadas e então a Rússia decidia se era uma informação relevante ou não", conta.
O tipo de espionagem não sabemos. Vinham à Argentina para construir uma fachada para, a partir dos documentos argentinos, ir à Eslovênia e mover-se por toda a União Europeia. Tanto na Argentina como na Eslovênia, eles tiveram interesse em temas energéticos, mandando informações a Moscou sobre Vaca Muerta. Hugo Alconada Mon
Espiões interessados na América Latina
Brasil e Argentina não são os únicos países onde há informação de espiões russos. Segundo o jornalista, esles estão espalhados por toda a América Latina e já foram encontradas evidências das presenças deles no Uruguai, Chile, Colômbia, Peru, México, Cuba e Nicarágua. "Utilizam América Latina em particular porque é um refúgio tranquilo e seguro para construir essa fachada, já que a Rússia teve dificuldade de manter suas fachadas em países como Canadá", lembra o jornalista, citando o caso dos Foley, o casal de espiões russos que viveu no Canadá e conseguiu entrar nos EUA com mais facilidade, sob os nomes de Donald Heathfield e Tracey Ann Foley (as identidades verdadeiras são Andrei Bezrukov e Elena Vavilova).
De acordo com jornais na época, o casal estava envolvido em espionagem para a KCB (agência de inteligência soviética) e foi preso nos EUA em 2010. Essa história teria inspirado a série "The Americans". "Com a descoberta, a Rússia precisou eleger outros países no hemisfério para poder entrar nos EUA", apontou o jornalista.
O autor faz questão de ponderar que a facilidade com que espiões russos entraram em nações da América do Sul não diz respeito a uma falha de segurança desses países, já que os mesmos também entraram em países como Alemanha e França. "Os dados biométricos são recentes. O que se verificava antes era a autenticidade de um passaporte. E por isso, a Rússia se aproveitava de uma falha mundial", destaca.
O jornalista ressalta que não são apenas espiões russos que circulam pela América Latina. Há diversos espiões estadunidenses, por exemplo. No entanto, o impacto midiático e social parece ser menor. "Acho que a espionagem americana produz efeitos diferentes, porque tem um argumento de proteção de seus próprios países. Os russos usam os espiões como fachadas e isso alimenta um outro impacto", analisa.