Sem remorso, Viking do Capitólio justifica invasão: 'Democracia é perigosa'
UOL
Jake é intransigente. Ao aceitar conversar comigo, em Phoenix, onde mora, marcou o encontro em um restaurante que imaginava servir comida orgânica. Mas, ao pedir o cardápio, percebeu que não existiam garantias de que o que estaria no prato seria mesmo alimentos que respeitam seus critérios — e optou por não comer.
Jake, apelido de Jacob Chansley, ficou famoso em todo o mundo pela roupa que usava em 6 de janeiro de 2021 ao invadir o Capitólio, nos Estados Unidos: capuz de pele de animal adornado com chifres, torso nu e o rosto pintado com as cores da bandeira americana. Ele se transformou em ícone do movimento que abalou a democracia americana, o "Viking do Capitólio" ou "Xamã QAnon".
Em novembro daquele mesmo ano, foi condenado a 41 meses de prisão. Hoje, graças a Donald Trump, Jake e outras 1,4 mil pessoas que atacaram as instituições americanas estão livres.
Após mais de uma hora de conversa, ao falar de democracia, Jake foi categórico: "A democracia é a lei da multidão". "Uma das formas mais burras de governo", se não houver um controle dos poderes, disse.
Tudo o que uma pessoa precisa fazer é mentir à multidão e eles vão matar quem acreditarem ser o inimigo. Quando, na verdade, quem mentiu é seu maior inimigo. Democracia, portanto, é perigosa.
Jake Chansley, o Viking do Capitólio, em entrevista ao UOL
Jake se declarou culpado à Justiça
Conforme nossa conversa se desenrolava, meu objetivo era que ele se sentisse à vontade para falar. Nosso encontro ocorreu cedo. Ele me aguardava diante de um café às 7h30. Calvo, com seus músculos talhados e sem os ornamentos que o fizeram famoso, usava uma camiseta com a estampa de um homem de barba e chifres. "Foi um presente de um fã", me explicou, orgulhoso.
Jake, que se declarou culpado perante a Justiça, estava entre os primeiros a entrar no Capitólio. Em sua confissão perante a corte, reconheceu ter usado um megafone para incitar a multidão. Já no Senado, liderou uma oração de gratidão a Deus.
"Obrigado por permitir que os Estados Unidos da América renascessem. Obrigado por permitir que nos livrássemos dos comunistas, dos globalistas e dos traidores de nosso governo", disse, segundo os documentos de seu processo.
Em sua condenação, há ainda a referência ao fato de Jake ter ocupado, no Senado, o lugar em que o vice-presidente, Mike Pence, havia estado uma hora antes. A invasão ocorreu no dia em que o Senado confirmaria a vitória de Joe Biden, e a pressão dos aliados mais radicais de Donald Trump era para que Pence rompesse com a ordem constitucional, o que ele não fez.
"Jake Chansley passou a tirar fotos de si mesmo na tribuna e se recusou a deixar o assento quando solicitado pela polícia. Em vez disso, ele declarou que 'Mike Pence é um traidor maldito'. Então, escreveu um bilhete ameaçador para o vice-presidente, dizendo: 'É apenas uma questão de tempo. A justiça está chegando'."
Antes de ser sentenciado, Chansley disse ao juiz Royce Lamberth que admitia seu erro em entrar no Capitólio e que aceitou a responsabilidade por suas ações. Enfatizou que não era um insurrecionista e estava preocupado com a maneira como foi retratado nas notícias após o tumulto. "Não tenho nenhuma desculpa", disse Jake.
Não tenho nenhuma desculpa. Meu comportamento é indefensável.
Jake Chansley, o Viking do Capitólio, ao juiz que o condenou
Ao anunciar a sentença, o juiz disse que o remorso de Jake parecia ser genuíno, mas observou a gravidade de suas ações no Capitólio. "O que você fez foi terrível", disse Lamberth. "Você se tornou o centro do tumulto."
Antes do 6 de Janeiro de 2021, Jake se autodenominava "Xamã QAnon". Mas, desde então, abandonou o apelido para evitar uma associação ao grupo de extrema-direita.
O QAnon surgiu nas profundezas das redes sociais em 2017, quando uma postagem anônima de uma conta que se identificava apenas como "Q" passou a publicar mensagens enigmáticas online sobre os supostos esforços de Trump para derrubar o que era chamado de Deep State — teoria sem fundamento de que o mundo é controlado pelo "Estado Profundo", uma cabala de pedófilos adoradores de Satanás, e que Trump é a única pessoa que pode derrotá-los.
No esforço para se distanciar do grupo, o advogado de Jake, Albert Watkins, disse que seu cliente sofria de problemas de saúde mental que foram agravados por ter sido preso em confinamento solitário devido aos protocolos da covid-19.

Perdão de Donald Trump
Naquela conversa no começo da primavera no deserto do Arizona, começamos por um outro ato que mudou sua vida: o perdão de Donald Trump, uma das primeiras atitudes do novo governo. "Eu estava fazendo exercícios numa academia de ginástica quando meu advogado me ligou para contar a novidade. Saí correndo pela rua aos berros: 'Liberdade, liberdade'", relembrou Jake.
Nas redes sociais, quando soube do perdão, sua reação foi mais agressiva: "OBRIGADO PRESIDENTE TRUMP!!! AGORA EU VOU COMPRAR ALGUMAS ARMAS DE FOGO!!! EU AMO ESTE PAÍS!!! DEUS ABENÇOE A AMÉRICA!!!! Os J6ers (prisioneiros do 6 de janeiro) estão sendo libertados e a JUSTIÇA CHEGOU... TUDO o que foi feito no escuro virá à tona!"
Quando Jake me explicou o que ocorreu em seu processo, sua versão não mostrava qualquer sinal do remorso identificado pelo juiz.
A Justiça me ferrou. Meu advogado ajudou a me ferrar. Mas, quer saber? Fui perdoado. Eu tinha confiança de que Trump manteria sua palavra. Mas não achava que seria tão rápido.
Jake Chansley, o Viking do Capitólio, em entrevista ao UOL
Embora muitas pessoas não tivessem antecedentes criminais antes da invasão de 6 de janeiro, nem todos em Washington naquele dia estavam numa "missão espiritual". Dezenas de réus tinham sido condenados anteriormente ou tinham acusações pendentes por crimes como estupro, abuso sexual de menores, violência doméstica, homicídio culposo, produção de material de abuso sexual de crianças e tráfico de drogas. Não era o caso do viking Jake, ainda que polêmicas tenham feito parte de sua vida.
Eu estava diante de um veterano da Marinha americana que foi expulso da corporação por se recusar a tomar uma vacina, uma década antes da aparição da covid-19.
Segundo ele, depois de conhecer os resultados oficiais da eleição de 2020, sua decisão foi de protestar em Phoenix. "Todos sabíamos que era uma mentira que Joe Biden tinha vencido", garantiu, olhando nos meus olhos enquanto falava sem qualquer prova. "O mal no mundo sabia que não poderia mais parar Trump e, então, lançaram um vírus que destruiria todo o progresso que ele fez", disse, alegando que a covid-19 seria uma conspiração contra o republicano.
"Eles tinham de destruir tudo", alegou. "O passo seguinte foi roubar a eleição. Todos sabiam nas ruas que estava ocorrendo", afirmou.
Entendi, naquele momento, que não seria uma entrevista como qualquer outra. Por duas horas, naquele restaurante repleto de aposentados em seus longos cafés da manhã, seu relato entusiasmado seria permeado por teorias conspiratórias e gestos grandiosos com seus braços tatuados.
A dinâmica da invasão ao Capitólio
Jake me contou que, nos protestos ainda no Arizona, conheceu uma mulher que lhe ofereceu carona para ir até Washington DC. A condição era de que ele topasse dirigir seu carro pelos 3,1 mil quilômetros que separam as duas cidades. O objetivo era chegar a um protesto no dia 12 de dezembro de 2020.
Na capital americana, ele conheceu outra mulher que ofereceu uma cama para ele ficar. "Foi como se o Mar Vermelho tivesse aberto para mim e eu atravessei", disse, dando um tom épico para sua viagem.
Uma semana antes dos protestos de 6 de janeiro, ele estava mais uma vez nas ruas de Phoenix manifestando contra o suposto roubo da eleição que deu a vitória aos democratas. Foi quando, de novo, uma pessoa lhe questionou se ele estaria disposto a viajar uma vez mais para Washington.
"Eles me disseram que, por eu estar ali todos os dias protestando contra o roubo da eleição, eu mereceria estar em Washington", disse, sem dar detalhes de quem seriam essas pessoas.
Jake garantiu que "nunca imaginou" que o evento terminaria em violência e nem nas prisões que se seguiram.
Não era um ato político. Claro que existia algo de político nisso. Mas era mais espiritual.
Jake Chansley, o Viking do Capitólio, em entrevista ao UOL
"Foi quando a polícia atacou a multidão pacífica que a merda eclodiu", disse, invertendo a história, as confissões de centenas de pessoas e a investigação por parte da própria polícia e até por parte do Congresso americano.
Sua versão se contrasta com as conclusões do relatório oficial da Comissão de Inquérito do Congresso americano que, em 19 de dezembro de 2022, apontou que nada daquilo que o mundo viu no dia 6 de janeiro havia sido apenas uma reação orgânica e espontânea.
O informe destacou que Trump mentiu sobre a existência de uma suposta fraude eleitoral com o objetivo de permanecer no poder, além de conspirar para anular a eleição. O documento mostrou como o republicano pressionou Pence a se recusar a certificar a eleição, algo que o vice-presidente não fez.
Num dos trechos, o informe ainda aponta como Trump convocou a multidão e lhes disse para marchar até o Capitólio, sabendo que alguns estavam armados. Ele ainda foi às redes sociais criticar o vice-presidente às 14h24 de 6 de janeiro de 2021, incitando mais violência. Apesar dos pedidos de seus assessores para que Trump parasse com a violência, ele optou por apenas acompanhar os acontecimentos pela televisão.
Tudo fazia parte de uma conspiração para anular a eleição. E foi o Secretário de Defesa, e não Trump, quem finalmente chamou a Guarda Nacional.
"Quando seu esquema para se manter no poder por meio de pressão política encontrou obstáculos, ele seguiu em frente com um plano paralelo: convocar uma multidão para se reunir em Washington, DC, no dia 6 de janeiro, prometendo que as coisas 'seriam selvagens!'", indicou o relatório final da Comissão de Inquérito.
"Essa multidão apareceu. Eles estavam armados. Estavam com raiva. Eles acreditaram na 'Grande Mentira' de que a eleição havia sido roubada. E quando Donald Trump os apontou para o Capitólio e lhes disse para 'lutar como o inferno', foi exatamente isso que eles fizeram. Donald Trump acendeu esse fogo. Mas nas semanas anteriores, o fogo que ele acabou acendendo estava acumulado à vista de todos", alertou a Comissão.
Em nossa conversa, porém, Jake insistiu que o público "ainda não sabia de toda a verdade" sobre aquele dia, apesar das dezenas de horas de vídeos que existem sobre a data que colocou em questão as instituições americanas. "Mas estamos chegando perto disso", prometeu.
Para o personagem que simbolizou aquele ataque, havia supostamente uma missão na ida para o Capitólio. "O mal tentou ser legalizado e queriam que fosse ilegal resistir ao mal. Por isso fui para Washington", justificou.
Crenças místicas: satânico, astrológico
A cada frase que ele considerava como "boa" ao longo da entrevista, Jake interrompia nossa conversa e as anotava em seu celular. Pensei comigo mesmo: estaria ele falando aquelas coisas pela primeira vez?
Uma palavra, porém, se repetia ao longo da conversa: "satânica". Segundo ele, existiria uma ofensiva para usar a lei e a política para "implementar uma agenda anti-espiritual, uma agenda satânica". "Eu escolhi encontrar esses bandidos no campo de batalha que eles criaram", disse, sobre sua ida para Washington.
Jake garante que a vitória de Trump em 2024 não é o final da "missão". "Vai levar tempo para restabelecer a verdade. Não é só tomar um comprimido", disse, talvez numa referência ao filme Matrix. "Mas é, ao mesmo tempo, um curto prazo para Deus. Estamos vencendo uma batalha como o mal de séculos", insistia.
Para ele, um ponto fundamental nesta batalha é o controle das redes sociais. "A censura no Twitter era importante. Quando eles perderam o Twitter para Elon (Musk), foi o começo do fim", analisou. De certa forma, ele confirmava que aquele movimento do bilionário pela plataforma jamais foi apenas uma "oportunidade de negócios". Havia um objetivo político claro: dar um canal poderoso para as vozes da extrema direita.
Quando eu lhe questionei sobre o que esperar do novo governo, suas frases ecoavam os slogans de Musk, responsável por um departamento para supostamente garantir a eficiência do estado. "O grande desafio é lutar contra a burocracia. Trump pode ser o comandante. Mas a frota é feita por marinheiros que estão fazendo um motim", disse.
Sua avaliação é de que existe uma "guerra". "Temos de aprender a ler o que está escrito no muro e ali está colocado que os americanos estão fartos. Se há alguém no caminho, precisam entender que o povo deu o mandato para Trump", insistiu, desconsiderando que parte das medidas adotadas violavam a Constituição.
"Trump é o pé que está dando o passo neste caminho, em nome da humanidade. Deus é a luz. Acabou a escuridão", afirmou.
Quando eu lhe questionei o que estaria em jogo nesta "guerra", seu tom era de indignação diante de minha ignorância. "A sobrevivência da humanidade", respondeu. "Estamos lidando com pessoas satânicas e trans-humanas", disse.
Problemas reais: inflação, turbilhão econômico
Enquanto conversávamos naquele café no Arizona, todas as pesquisas mostravam um declínio da popularidade de Trump.
Perguntei, portanto, se ele acreditava que os desafios seriam superados, como a inflação. "O que eles querem é que desistamos", rebateu, sem explicar quem eram "eles". "A elite tem um interesse de criar a ilusão de que nada pode ser feito. Mas é um castelo de cartas. Haverá resistência. O mal não desiste. Mas Deus tampouco", alertou.
Insisti em tentar saber se haveria uma eventual queda no apoio ao governo, caso as mudanças nas vidas das pessoas não fossem perceptíveis. Sua resposta, uma vez mais, foi mais mística que factual.
"Não estamos no comando. Essa energia é resultado de milhares de anos de um processo. Estamos completando ciclos e começando novos. Estamos saindo de um ciclo dormente. E entrando numa era da consciência. Uma nova civilização global. Estamos numa nova frequência", disse.
Quando perguntei sobre o caos nos mercados financeiros diante das tarifas criadas pelo presidente e a guerra comercial que havia se instalado, Jake apenas respondeu: "Trump sabe o que está fazendo". "É uma dádiva estarmos vivendo isso. A transição parece o caos, que foi Biden. Trump chega e tudo começa a fazer sentido. Quem não abraçar o novo sistema vai sofrer", advertiu.
"Temos uma oportunidade única. Nunca o povo teve uma pessoa que os representasse, salvo quando o país foi fundado. Temos o gabinete que mais representa os valores americanos", defendeu, ignorando os levantamentos que indicaram que se tratava também do gabinete com o maior número de milionários e bilionários da história.
Para provar o "momento único", Jake recorreu à astrologia. "Plutão estava na mesma posição há 250 anos quando o país foi criado e volta a estar na mesma posição agora", justificou.
Diante das críticas de Jake à democracia, questionei qual seria o melhor sistema de governo. "A república constitucional dos EUA".
Ele ponderou que esse sistema precisa vir com educação. "Temos um governo que intencionalmente subverteu a educação para que a multidão não possa governar", explicou.
Jake não media palavras ainda para criticar a agenda woke. "Isso foi algo imposto. As pessoas odeiam isso", garantiu. "Eles são satânicos, veneram o diabo. Mas os globalistas estão na defensiva, algo que eles nunca experimentaram", tentou me explicar.
Ele ainda defendeu que o mundo deve se desfazer da ONU. "Quem disse que o mundo precisa de um governo? Deus nos governa. Qualquer sistema deve ser descentralizado e a criptomoeda pode ser uma república econômica", defendeu.
Jake me contou que começou uma moeda digital. "Isso pode acabar com escravidão monetária. É um sistema paralelo de governo. Essa é a governança global", disse.
Pedi que ele comentasse a questão da imigração, alvo de polêmicas nos EUA. E, uma vez mais, a palavra "satânica" voltou à mesa. "A autodeportação é uma ótima ideia. Agir contra as gangues é uma ótima ideia. Mas isso envolve recuperar o Panamá e jogar luz no governo corrupto do México", disse.
"Fico satisfeito em ver que Guantánamo e El Salvador existem", afirmou, citando dois dos locais para onde Trump vem deportando os imigrantes.
"São pessoas satânicas que precisam deixar esse país. Elas precisam ser mandadas para uma prisão militarizada. E gosto que o cara em El Salvador seja um cristão", afirmou, numa referência ao presidente Nayib Bukele e seu acordo para transformar suas prisões em destinos para os deportados dos EUA.
"Isso é o que vai precisar ser feito no mundo todo. Vai ter de ser um esforço global", defendeu Jake.
Perguntei ainda se a onda de deportações não afetaria a economia ao privar os americanos de mão de obra. De novo, a resposta veio em forma de enigma. "Precisamos usar o momento de nosso inimigo contra eles. Se não temos trabalhadores, vamos usar isso como uma arma contra as empresas que os contrataram", disse.
Voltei à questão central: para ele, por que tudo isso estava ocorrendo?
"Estamos despertando. A verdade está vindo à tona. Está chegando a hora", concluiu. Naquele instante, ao terminar a frase, ele levantou as sobrancelhas, interrompeu a entrevista de novo e disse: "Uau, essa é outra frase boa". E anotou, visivelmente satisfeito.