Nova geração de líderes do tráfico é responsável por 'ideologia dos sinais'

21 de janeiro de 2025 às 08:16
Brasil

Foto: Reprodução

UOL

A Polícia Civil da Bahia está investigando uma série de mortes que, supostamente, estariam ligadas ao uso de símbolos adotados por facções criminosas que atuam no estado. Essas ações podem ser reflexo da mudança no perfil das lideranças, com chefes mais jovens ditando comportamentos, que incluem o uso de símbolos, em um "código de conduta" dos grupos.

O que aconteceu

Facções criminosas adotaram gestos e sinais como uma forma de identificação dos gruposAo menos seis pessoas teriam morrido em 2024 por fazerem os ditos sinais proibidos, segundo a Polícia Civil. O último caso de repercussão aconteceu no último dia 6, quando Marcos Vinicius Alves Gonçalves, 20, foi morto a tiros em Feira de Santana após uma publicação em uma rede social. O jovem não tinha antecedentes criminais.

Não há confirmação oficial de que pessoas tenham morrido por terem feito sinais que desagradaram os grupos criminosos, mas, historicamente, organizações em todo o mundo adotam bandeiras visando se diferenciar dos seus rivais em conflitos territoriais. Isso acontece com os cartéis que operam na América do Norte, nas máfias da Europa e entre grupos rebeldes no Oriente Médio.

Disputas geopolíticas e ideológicas entre as facções podem explicar o apego aos símbolos e o aumento da violência por conta disso. Ao UOL, o investigador da Polícia Civil da Bahia que atua em operações especiais contra organizações criminosas, Douglas Pithon, narrou que lideranças mais jovens são mais propensas a defenderem símbolos, explicando que há uma questão de "ego" entre os grupos.

Nos primórdios das facções, quando parte das lideranças eram pessoas mais velhas, importava mais o "código de ética" do faccionado e menos os símbolos. Ainda de acordo com o investigador, muitas dessas lideranças, que se comportavam de forma mais discreta, acabaram morrendo, e outra grande parte foi para a gestão do comércio de drogas no atacado. Para se ter uma noção, apenas o PCC movimenta R$4,9 bilhões com o tráfico internacional por ano, de acordo com o Gaeco (Grupo de Atuação Especial ao Crime Organizado).

O mais novo quer mostrar, quer atirar, quer mostrar poder, quer ter símbolo. É um cara com vinte e poucos anos, que está portando fuzil. É o que a gente chama de atuação de chão de fábrica, o poder pelo poder. É o cara que é o gerente. Para quem é a liderança de verdade, a gente percebeu que ele quer dinheiro, lavar dinheiro, e pouco se importa com o gesto que o morador está fazendo com as mãos.

Douglas Pithon, PolíciaL Civil da Bahia

O fenômeno não se restringe a Bahia. Em outros estados com intensos conflitos entre facções, Ceará, Rio de Janeiro, Mato Grosso e Amazonas, também têm registrado casos de repercussão por conta dos símbolos. No último dia 10, em Sorriso (MT), Everson Santos da Silva, 36, teria ido a um bar onde membros do CV estavam presentes. De acordo com a Polícia Civil mato-grossense, o homem, supostamente, tirou uma foto fazendo um gesto que foi entendido como alusão ao PCC. Duas pessoas acabaram confessando o crime e dito a polícia que acreditavam que a vítima tinha ligação com o PCC.

O CV usa como símbolo os dois dedos levantados, no estilo " v de vitória ou " paz e amor". Cada dedo representa uma letra da sigla e seus membros costumam dizer que tá "tudo 2", quando uma situação é favorável ou confortável para o grupo.

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Existem várias ramificações, mas quem tenta controlar o território são esses dois. O CV tem características que buscam a manutenção do território, a criação de ideologia de enfrentamento, cultura de empoderamento dos facionados nas comunidades e busca até envolver a própria comunidade nas práticas delituosas - apontando o que pode e o que não pode fazer, promovendo eventos e etc.

Douglas Pithon, Polícial Civil da Bahia

O suposto símbolo do PCC, por sua vez, é o três com os dedos. Quando tá "tudo 3", significa que há o controle da facção paulista ou de suas aliadas, que se espalham pelo Brasil. Algoz do CV, os sinais tidos como símbolos do grupo seria três dedos levantados, independente da composição: o sinal de "ok" e até o "te amo" em libras também podem ser confundidos.

Na Bahia, o "3" do PCC é atribuído ao BDM (Bonde do Maluco) — que tem negócios com a facção paulista, segundo Pithon. Ainda no estado baiano, cogitou-se até uma fusão entre o BDM e o Terceiro Comando da Capital (TCP), que já manteve estreita relação com o PCC no Rio de Janeiro. Contudo, o investigador não consegue precisar com exatidão se houve uma fusão completa entre as duas organizações no nordeste.

O PCC em si é mais comercial, focado no lucro, a boa distribuição da droga e na grande rota dos portos. Tanto que na Bahia eles nem envolvem o nome nos conflitos, participando apenas por meio desses outros grupos que existem (BDMTCP). É uma maneira do PCC unir o nome e não se envolver diretamente nesse conflito. Mantém o BDM porque não querem que falem do PCC, pois as ações policiais canalizam os esforços.

Douglas Pithon, Polícial Civil da Bahia

Em alguns pontos do Rio de Janeiro, fazer um sinal com os cinco dedos expostos também pode representar perigo, já que o número está associado à milícia. Outro grupo atuante no estado, ADA (Amigo dos Amigos), costuma fazer o L, em alusão a letra inicial do nome de um dos fundadores da facção.

Na Bahia, o "3" do PCC é atribuído ao BDM (Bonde do Maluco) — que tem negócios com a facção paulista. Ainda no estado baiano, cogitou-se até uma fusão entre o BDM e o Terceiro Comando da Capital (TCP), que manteve estreita relação com o PCC durante muito tempo. Contudo, o investigador não consegue precisar com exatidão se houve uma fusão completa entre as duas organizações no nordeste.

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Alguns emojis também podem representar símbolos para as facções. A bandeirinha vermelha () foi adotada pelo CV, o símbolo de Yin e Yang (??) ou a bandeira branca (?) pode representar o PCC, já os milicianos gostam de usar uma bandeira preta ().

Além de gestos, símbolos e emojis, a vestimenta também é motivo de atenção para o morador. UOL conversou com um homem de 24 anos que reside em uma comunidade de Salvador. Sua identidade será preservada. De acordo com ele, algumas camisetas de times de futebol podem servir como identificação para faccionados.

Onde eu moro há uma divisão de ruas em que de um lado é uma facção e de outro é outra. Tomo muito cuidado em relação a isso, onde eu moro não pode fazer sinal de dois. Onde minha namorada mora é dois, então fico com medo. Ela às vezes recebe uns comunicados em visualização única sobre a questão dos gestos, que eles mandam para todo mundo, mas a gente sabe que é bem complicado. Aqui onde eu moro eu ando com qualquer camisa, por exemplo. Eu cismo de usar certas camisas por lá. Tenho um short da Argentina, e a Argentina os caras do BDM usam muito. Aí eu não vou entrar lá todo de Argentina que não sou doido. Tem lugares aqui que eles implicam com Colômbia e Jamaica também.

Morador de uma comunidade de Salvador ao UOL

Criam (o símbolo) com o intuito de envolver a sociedade no conluio da prática criminosa, nessa ideologia dos sinais. Tem o símbolo, tem a facção e tem a comunidade. Eu já cheguei a ouvir de morador, que é trabalhador, que em tal lugar é 3: 'aqui é tudo 3'. O cara é trabalhador, mas tem que se adaptar para não sofrer consequências.

Douglas Pithon, Policial Civil da Bahia

"Cortina de fumaça"

A discussão em torno dos símbolos nas fotos e a falsa ligação de inocentes com facções pode acabar escondendo um grande problema: o poder desses grupos criminosos. Ao UOL, Ana Gabriela Ferreira, professora de Direito Penal e Criminologia da UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana), explica que a questão em torno da simbologia não pode ser ignorada, mas que o Estado deve atuar nas causas reais da guerra do tráfico.

Isso é uma cortina de fumaça, e não podemos ficar só essa lógica da simbologia, não ignorando, pois claro, é preciso que se evite, para que pessoas que estão em áreas de organizações rivais, é preciso ter esse cuidado. Mas já existiam outras formas de atuação, checagem de celular, busca nas redes. Tudo isso são coisas que são conhecidas socialmente como formas de avaliar se a pessoa pertence ao grupo ou não. As pessoas estão esquecendo quais as causas reais dessa guerra. a causa real é a ascensão de grupos tão organizados que geram o pânico.

Ana Gabriela Ferreira, professora de Direito Penal e Criminologia na UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana)

Redes sociais estão tendo um papel importante na repercussão dos casos. No final do ano passado, Henrique Marques de Jesus, 16, teria morrido por fazer um sinal de "três" com as mãos. Criminosos de Jericoacoara, onde o jovem passava férias, teriam encontrado uma postagem em uma rede social em que ele realizava o gesto. O pai de Henrique relatou que o sinal feito pelo filho é comum em Bertioga, litoral paulista, onde o adolescente residia, e que ele não tinha envolvimento com crime. No Ceará, também há a disputa entre o CV e o PCC.

Henrique Marques de Jesus, 16, foi encontrado morto em Jericoacoara (CE)
Henrique Marques de Jesus, 16, foi encontrado morto em Jericoacoara (CE) Imagem: Redes sociais

Parece ser um fenômeno recente, uma onda. As redes sociais têm muito impacto nisso, na busca desses gestos, mas também pelas divulgações dos próprios crimes. A divulgação potencializa essa sensação de insegurança. Nós não temos certeza sobre os gestos que saem gerando os homicídios. O que acontece é que temos muito receio de tudo isso que está gerando essa onda de homicídios, e as disputas são reais. Tudo que está associado a essa disputa acaba sendo muito assustador.

Ana Gabriela Ferreira, professora de Direito Penal e Criminologia na UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana)

O que falta é estratégia do estado. O que gera o fracasso das organizações é estratégia e inteligência não é o uso de força, isso não tem dado resultado, tem criado uma situação que a população está entre a facção assassinando de um lado e a polícia de outro.

Ana Gabriela Ferreira, professora de Direito Penal e Criminologia na UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana)