Lula critica potências, apela por nova ONU, e Israel não aplaude

24 de setembro de 2024 às 15:20
Mundo

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UOL

O discurso na ONU do presidente Luiz Inácio Lula da Silva nesta terça-feira (24) foi uma tentativa deliberada do governo brasileiro de posicioná-lo como uma espécie de porta-voz dos destituídos, das reformas do sistema internacional e das vozes que denunciam o abuso de potências.

Se o texto foi amplamente trabalhado por semanas entre o Itamaraty e o Palácio do Planalto e até a madrugada de ontem, sua linha havia sido já determinada: dar a mensagem de que o "Sul Global" é uma realidade e que tem ambições de impedir que a atual estrutura de poder seja mantida.

Aproveitando o tom já de grave preocupação por parte da cúpula da ONU, Lula insistiu que, do ponto de vista dos emergentes, a estrutura atual não atende aos interesses.

Na fundação da ONU, éramos 51 países. Hoje somos 193. Várias nações, principalmente no continente africano, estavam sob domínio colonial e não tiveram voz sobre seus objetivos e funcionamento. (...) Estamos chegando ao final do primeiro quarto do século 21 com as Nações Unidas cada vez mais esvaziada e paralisada. É hora de reagir com vigor a essa situação, restituindo à Organização as prerrogativas que decorrem da sua condição de foro universal. presidente Lula, na ONU

A escolha foi a de lançar críticas duras e explícitas contra as potências, os ricos e a concentração de poder.

"Lula foi muito bem, principalmente ao colocar os emergentes e os países pobres no centro", disse ao UOL Xanana Gusmão, primeiro-ministro do Timor Leste e prêmio Nobel da Paz. "Ele tocou num tema delicado: como somos nós quem financiamos os ricos", completou. Lula usou seu discurso para mostrar a incoerência do sistema financeiro internacional e o impacto das dívidas externas.

"A declaração do presidente Lula em relação aos países em desenvolvimento é muito importante e precisa ser escutada", disse o também prêmio Nobel da Paz e primeiro-ministro interino de Bangladesh, Muhammad Yunus.

Países da África tomam empréstimo a taxas até oito vezes maiores que a Alemanha e quatro vezes maiores que os Estados Unidos. É um plano Marshall às avessas, em que os mais pobres financiam os mais ricos. Sem maior participação dos países em desenvolvimento na direção do FMI e do Banco Mundial, não haverá mudança efetiva.
presidente Lula

Lula discursa durante a abertura da Assembleia Geral da ONU, em Nova York
Lula discursa durante a abertura da Assembleia Geral da ONU, em Nova York Imagem: Ricardo Stuckert / PR

Discurso agradou palestinos e países em desenvolvimento

O brasileiro ganhou o público quase imediatamente, ao fazer uma referência à presença do presidente palestino, Mahmoud Abbas, na Assembleia. Essa é a primeira vez em quase 80 anos que a Palestina se senta ao lado dos demais países na ONU. "Foi um gesto muito importante e que ficará em nossa história", comemorou um delegado palestino na ONU.

Ao UOL, um dos diplomatas mais influentes na Europa, o ex-chanceler espanhol e ex-subsecretário-geral da ONU Miguel Angel Moratinos qualificou o discurso de Lula de "muito forte" e "contundente sobre a Palestina". "Ele é ouvido pelo mundo, inclusive pelos europeus", afirmou.

Também ecoou de forma positiva, entre os países em desenvolvimento, suas críticas contra os organismos pouco representativos da entidade, e fez uma ligação entre o colonialismo e a ausência de africanos e latino-americanos no Conselho de Segurança.

Entre delegações estrangeiras, sua crítica ao poder de veto foi elogiada, ainda que o governo dos EUA insista que "não abrirá mão" desse poder.

Uma preocupação entre as delegações estrangeiras se refere ao significado que o Brasil quer dar à reforma. O temor de muitas delegações é de que um processo de uma nova "constituinte" para a ONU abra uma caixa de Pandora. Num mundo polarizado e em guerra, reabrir um pacto dessa magnitude pode significa o fim definitivo da instituição, sem que nada seja colocado no lugar como governança.

Insatisfação de Israel e Ucrânia

Lula também recebeu aplausos ao alertar que nunca uma mulher liderou a ONU —mesmo sem ter promovido o mesmo padrão em suas escolhas internas no Brasil em certos cargos.

Sua ofensiva contra os gastos com armas e a concentração de poder e de riqueza era o que os emergentes queriam escutar. Lula ainda tomou a decisão de fazer uma defesa de sua proposta de diálogo de paz na Ucrânia, criticou as sanções americanas contra Cuba, o abandono do Haiti pela comunidade internacional e denunciou os atos de Israel como um "direito de vingança".

Na Ucrânia, é com pesar que vemos a guerra se estender sem perspectiva de paz. O Brasil condenou de maneira firme a invasão do território ucraniano. Já está claro que nenhuma das partes conseguirá atingir todos os seus objetivos pela via militar.
presidente Lula

Em Gaza e na Cisjordânia, assistimos a uma das maiores crises humanitárias da história recente, e que agora se expande perigosamente para o Líbano. O que começou como ação terrorista de fanáticos contra civis israelenses inocentes tornou-se punição coletiva de todo o povo palestino. São mais de 40 mil vítimas fatais, em sua maioria mulheres e crianças. O direito de defesa transformou-se no direito de vingança, que impede um acordo para a liberação de reféns e adia o cessar-fogo.
presidente Lula

Na delegação de Israel, a decisão foi a de não aplaudir o brasileiro, enquanto o semblante do presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky era obviamente de insatisfação quando Lula decidiu defender o projeto brasileiro e chinês de abrir diálogo entre russos e Kiev.

Venezuela fica fora do discurso

Uma das crises mais importantes para o Brasil, porém, ficou de fora do discurso: Venezuela. Fontes em Brasília confirmaram ao UOL que, em versões preliminares, o tema havia sido incluído. Mas houve uma decisão política de nao fazer referência ao impasse em Caracas. Momentos depois, o presidente americano Joe Biden criticou Nicolas Maduro ao subir ao palco após o brasileiro.

Para uma ala dentro do Itamaraty, a Venezuela foi "a grande ausente do discurso". Em versões anteriores da fala de Lula, a crise no país era citada, mas sem uma condenação ao presidente Maduro. A orientação era para que não houvesse, no discurso, nada que justificasse uma ruptura da possibilidade de diálogo.

Lula sai de Nova York tendo mandado uma mensagem clara de que se apresentará como porta-voz dos países em desenvolvimento. Mas, para além dos aplausos, nada garante que sua voz seja suficiente diante de um mundo profundamente polarizado e, como disse o secretário-geral da ONU, António Guterres, a "terra treme sob o pés" de cada líder.