Prisão de fundador do Telegram une aliados e críticos do Kremlin e ameaça 'arma de guerra' da Rússia na Ucrânia

28 de agosto de 2024 às 09:30
Mundo

CEO do Telegram, Pavel Durov — Foto: AFP

O Globo

Em um país onde a censura digital é estrita, mesmo antes do início da invasão da Ucrânia, opositores do presidente, Vladimir Putin, encontraram no mundo aparentemente sem regras do Telegram um local seguro para suas críticas.

Editoriais barrados em veículos tradicionais chegam a seus leitores. Canais de jornalismo independente publicam imagens de atos de corrupção e fraude em eleições. E, mais recentemente, críticos da guerra mostram detalhes ausentes na imprensa oficial, especialmente envolvendo as derrotas na frente de batalha.

“O caso de Pavel Durov é uma questão de princípio. Esta é uma questão de saber se a sociedade ocidental moderna seguirá o caminho da liberdade digital ou o caminho de um Gulag digital, e de um Gulag construído às custas dos cidadãos comuns e das empresas privadas”, escreveu, em artigo no jornal Novaya Gazeta Europa (banido na Rússia), a jornalista Yulia Latynina (que vive no exílio).

Outro a se pronunciar foi Ilya Yashin, que ficou dois anos e meio em uma colônia penal, e que foi libertado na troca de prisioneiros entre Rússia e EUA, no começo do mês.

“Não considero Pavel Durov um criminoso e espero que ele consiga provar a sua inocência em tribunal. Exorto as autoridades francesas a não o manterem atrás das grades durante a investigação e, por exemplo, a libertá-lo sob fiança”, escreveu Yashin no X.

Do lado político oposto, mas na mesma frente de defesa de Durov, a editora-chefe da RT, o canal público russo em inglês, Margarita Simonyan, creditou a prisão do fundador do Telegram a uma tentativa ocidental de obter dados dos usuários.

“Qual é a principal coisa na história de Durov? Que todos que estão acostumados a usar o Telegram para conversas e correspondências delicadas excluam essas mensagens agora mesmo e não façam isso novamente”, escreveu no X. “Porque o prenderam [Durov] para pegar as chaves [de acesso]. E ele as entregará.”

A preocupação não fica apenas no campo político. Segundo relatório do Instituto para o Estudo da Guerra sobre a guerra na Ucrânia, divulgado domingo, blogueiros militares, espécie de correspondentes informais no front, apontam que o Telegram é um meio de comunicação prioritário entre os oficiais.

Por ali passam dados sobre movimentação de tropas inimigas e coordenadas para ataques com mísseis — na prática, o que protege as comunicações sobre uma guerra que teve um custo humano, financeiro e político incalculável é o sistema de criptografia de um aplicativo cuja chave de acesso está nas mãos de uma pessoa detida pela França.

— A transferência de inteligência, a correção de curso de artilharia, a transmissão de vídeo de helicópteros e muitas outras coisas são, de fato, muitas vezes realizadas com a ajuda do Telegram — disse à AFP Alexei Rogozin, diretor do Centro para o Desenvolvimento de Tecnologias de Transporte em Moscou. Ele afirmou que, após a detenção, alguns brincaram que isso seria equivalente à "prisão do diretor de comunicações das Forças Armadas" russas.

Blogueiros militares também discutem se essa seria a hora para o comando russo estabelecer um sistema seguro — um deles, Alexander Medvedev, reiterou que é "é difícil prever por quanto tempo o Telegram continuará" com sua configuração atual. Autoridades em Moscou dizem ser possível seguir sem o aplicativo.

— O exército tem meios de comunicação suficientes para não se preocupar com o Telegram — disse ao portal Gazeta Aleksei Juravlev, primeiro vice-presidente do Comitê de Defesa da Duma, a Câmara baixa do Parlamento. — Tenho certeza de que, mesmo que o Telegram não possa ser usado, um substituto será encontrado rapidamente. O soldado russo não carece de invenção e engenhosidade, que usa com sucesso no campo de batalha.

Propaganda de guerra

Como ressaltou Medvedev, um eventual bloqueio do Telegram poderá ainda ser o fim de uma ferramenta poderosa de propaganda de guerra.

Um artigo publicado em julho por pesquisadores das Universidades de Notre Dame, Kennesaw e Colby, nos EUA, mostrou que a invasão da Ucrânia foi antecedida por uma “avanlanche” de publicações militares no Telegram: segundo o estudo, houve um aumento de 8.925% no número de textos e de 5.352% do número de imagens na plataforma nas duas semanas antes da guerra.