'Para vencer, Kamala não pode cometer um erro sequer', diz criador de bola de cristal das eleições americanas
O Globo
Ela está certa em dizer isso para a militância. E também em olhar no detalhe o que as pesquisas mais recentes revelam: uma bolha, criada pelo alívio na coalizão democrata com a saída de Joe Biden da corrida, pois, acertada ou equivocadamente, o presidente era percebido pela maioria da base e do comando do partido como incapaz de vencer, como o fez em 2020, o ex-presidente Donald Trump. Os números mostravam que havia, inclusive, uma possibilidade de desastre ainda maior para os democratas em novembro, também nas disputas locais. Além disso, as pessoas não conheciam Kamala de fato até a Convenção Nacional Democrata. Ninguém segue a agenda dos vice-presidentes. Mas há outro aspecto importante que ela considera quando posiciona Trump como favorito e aponta, com razão, que esta eleição ainda é dele, mas pode ser perdida.
Qual é esse aspecto?
Que os fundamentos desta disputa ainda favorecem a oposição. Biden segue na Presidência, com rejeição recorde. Seus números já foram piores, mas hoje estão entre 35% e 45% de aprovação, dependendo do método usado pelas pesquisas. Fraco. E os dois problemas centrais para Kamala são a inflação e a entrada recorde de imigrantes sem documentos, que foram sentidos no país todo. Questões que seguem na cabeça das pessoas aqui, e a campanha de Kamala sabe disso.
Estrategistas republicanos dizem que a disputa apenas voltou ao normal, com o país tão dividido como em 2016 e 2020. Já democratas defenderam na convenção o nascimento de movimento similar ao de Barack Obama em 2008. Quem está mais perto da verdade?
Nenhum dos dois lados. Os republicanos até gostariam, mas não têm o menor controle sobre se o crescimento, que é real, de Kamala vai se dissipar ou, ao contrário, se seus números aumentarão ainda mais. Ficam repetindo frases de consultores políticos arrogantes e muito bem pagos para dizer o que o cliente quer ouvir. E os democratas também estão errados. O que estamos presenciando não é, nem de longe, o que se viveu em 2008 com Obama.
Por quê?
A ascensão irreversível de Obama tem a ver com o candidato, obviamente, mas também com a recessão terrível que quase se transformou em depressão nos EUA com a crise financeira global. Vou além: outro candidato democrata sem o sobrenome Obama teria vencido o senador John McCain naquela eleição. Se Hillary Clinton tivesse vencido as primárias, ela seria a presidente. O que se vê hoje não tem paralelo real com 16 anos atrás.
Se fosse contratado hoje pela campanha democrata, que conselhos daria a Kamala?
Use cada um dos próximos 70 dias da melhor maneira possível. Aliás, não, use cada hora! A eleição segue por um fio de cabelo. E, para os democratas, especificamente, por conta da distribuição demográfica, é preciso estar na frente no voto popular, e com margem de pelo menos 3 pontos percentuais para, quem sabe, dependendo da especificidade da disputa em cada um dos sete estados decisivos, vencer no Colégio Eleitoral. Diria à campanha que esta é uma disputa especialmente difícil, mas que, com Kamala na cabeça da chapa, é possível vencer, mas não se pode cometer um erro sequer.
E para os republicanos?
Aí meu trabalho seria mais fácil: mandem Trump para as Bermudas e sigam a campanha sem ele. E por favor, sem wi-fi ou satélite aberto no resort em que o deixarão. Deixem-no mudo.
Se as eleições fossem hoje, quem venceria?
Kamala, por muito pouco, no Colégio Eleitoral e com vantagem ligeiramente maior do que a de Hillary (2 pontos percentuais, e quase 3 milhões de votos), talvez 3 pontos percentuais à frente. Venceria no limite. Não seria uma vitória ampla, o que carrega em si, como todos sabemos se lembrarmos de 2020, seus próprios problemas.
Faltam dois meses e meio para a eleição. É pouco ou muito tempo para a corrida mudar sensivelmente?
Em uma disputa como esta, com poucos indecisos, a noção de tempo é diferente. Qualquer migração de meio ponto percentual em um dos sete estados decisivos tem possibilidade real de impor uma mudança no tabuleiro que estamos vendo hoje. Kamala, na prática, teve um mês para se apresentar e, mérito dela, aproveitou bem esse período, mas ele terminou na quinta-feira. O próximo capítulo significativo será o debate do dia 10 de setembro, e não será um espetáculo bonito de ver.
Por quê?
Trump virá com tudo, com sangue nos olhos. E é impossível saber qual será a resposta dos eleitores para a tentativa de desconstrução da candidata e da mulher Kamala pelo adversário. Ou seja, é pouco tempo, mas muita coisa pode mudar.
Qual campanha está fazendo um trabalho melhor para convencer os poucos indecisos que o senhor menciona?
A de Kamala. Com a ressalva de que é uma tarefa mais fácil quando se tem uma candidata com imagem menos cristalizada. Quando se sabe o que as pessoas querem, há o luxo de poder trabalhar o discurso do candidato para se encaixar em determinado quadrado. Não é trapaça, é política. Kamala está aproveitando a vantagem. Como é que, a esta altura, alguém vai mudar sua opinião sobre Trump?
As bocas de urna em 2016 e mais ainda em 2020 apontaram menos votos do que Trump teve…
Sim, e no caso dele, aprendi que é preciso escutar bem. A base trumpista é um culto, votará nele seja o que for. Há os que se dizem indecisos nas enquetes e reclamam das postagens dele, que são vulgares, que ele não tem papas na língua. Mas, na hora do voto, vão cravar Trump, não é indeciso coisa nenhuma: [afinal] se essa é a pior coisa, a esta altura do campeonato, que você pode dizer do ex-presidente...
E Kamala, se revelou uma boa candidata?
Está se tornando uma. Ela é melhor do que foi nas primárias em 2020 e na vice-presidência. Ela me lembra algo que não via desde George Bush, o pai, e Al Gore, políticos escondidos na vice-presidência e forçados a reencontrar suas habilidades. Ela ganhou crédito extra ao se manter acordada durante o longo discurso de Biden sobre ele mesmo na convenção dela. Ainda que por pouco.