Reflorilha: artesanato e sustentabilidade transformam Ilha do Ferro em exemplo de respeito ao meio ambiente

30 de maio de 2024 às 22:28
Especial

Primeiras mudas já foram plantadas na ilha - Foto: Cortesia

Por Marcos Filipe Sousa

José Petrônio Farias e Yang da Paz Farias, pai e filho respectivamente, são artesãos na Ilha do Ferro, localizada na cidade alagoana de Pão de Açúcar, às margens do Rio São Francisco. As habilidades passadas dos mais velhos para os novos, agora faz caminho inverso, após a principal matéria prima de suas obras, a madeira, começar a desaparecer. A juventude está ensinando aos antigos mestres um novo conceito, o da sustentabilidade.

Yang começou no artesanato em madeira aos sete anos de idade com seu pai, que por sua vez, aprendeu com o mestre Fernando Rodrigues, já falecido. Seu olhar infantil admirava os pássaros e as formigas gigantes esculpidas pelos dois, e enquanto os adultos descansavam, era a hora do pequeno pegar as ferramentas e tentar fazer as suas próprias peças. 

“A Ilha do Ferro é um local que teve uma grande transformação social graças ao artesanato. Principalmente pela criatividade dos artistas na elaboração das peças e na capacidade de contar histórias e encantar as pessoas que a visitam”, detalhou sobre o local.

Yang iniciou seu trabalho no artesanato após observar os mais velhos (Foto: Arquivo Pessoal)
Yang trabalha com madeira após observar os mais velhos - Foto: Arquivo Pessoal

O que havia iniciado com o mestre Fernando, no final da década de 1960, atualmente conta com aproximadamente 70 artesãos que trabalham com peças em madeira. Tantos anos trazendo a criatividade no formato de escultura não despertava um questionamento: e se a madeira acabar? Como bons sertanejos, um povo conhecido pela sua fé, confiavam na natureza. Contudo, nos últimos anos, a matéria-prima começou a faltar, colocando em risco a tradição mundialmente conhecida da ilha.

Observando a realidade, as novas gerações de artesãos deixaram os instrumentos de lado, e com a gama de informações disponíveis, começaram a pesquisar sobre sustentabilidade.

“Há um bom tempo faço minhas peças da forma mais sustentável possível, sempre aproveitando a madeira morta e os galhos que a natureza oferece. Além disso, comecei a produzir mudas para começar a reflorestar a região”, comentou Yang.

Um estudo realizado com a parceria do Sebrae Alagoas apontou a redução no número de áreas cobertas por vegetação na ilha nos últimos quatro anos. “Preocupar-se com o meio ambiente é um dever de todos que pensam no futuro. Além disso, tudo o que temos veio da natureza e por isso, é tão importante retribuir o que ela nos deu”.

O jovem se junta com outros artesãos e nasce a Associação Ilha das Artes, que atualmente conta com 37 participantes. Juntos com o Sebrae, IMA [Instituto do Meio Ambiente] e Chesf [Companhia Hidro Elétrica do São Francisco] iniciaram um trabalho para unir o artesanato ao conceito de sustentabilidade, nascendo o “Reflorilha”. 

Artesãos se unem e formam a Associação Ilha das Artes - Foto: Cortesia

O nome foi escolhido pelos próprios escultores e Yang é o atual presidente. “Provocamos os colegas a começar esse projeto de produção de mudas nativas para reflorestar a região e conseguir matéria-prima para trabalhar. Será muito importante para o futuro da ilha”.

Pereiro, Aroeira, Umburana de cheiro, Braúna, Mulungu e Craibeira são as espécies da flora nativa mais usadas na elaboração das peças, e serão elas as responsáveis por reflorestar a ilha. O Sebrae articulou o projeto, o IMA fez o mapeamento das áreas e capacitou os artesãos na confecção de mudas e o plantio adequado; e a Chesf com a doação das sementes. O projeto também conta com a ajuda de moradores da ilha que cedem porções de terra para construção dos viveiros.

“Esse projeto vai nos dar ainda mais visibilidade no cenário da arte nacional, pois teremos o selo de sustentabilidade, mostrando que nossa associação se preocupa com o meio ambiente. Também garantir mais recursos, como madeira de apreensão e no futuro, matéria-prima da própria região. Além de ajudar o ecossistema da ilha”, explicou o jovem artesão.

Quem fala com entusiasmo sobre o projeto é o mestre José Petrônio que fabrica suas peças desde o início dos anos 2000. “Nós somos dinossauros e vem essa juventude ensinar essas coisas boas para gente”, fala empolgado sobre o Projeto Reflorilha.

Ele começou no artesanato após um desafio do mestre Fernando para confeccionar uma peça, gostou e continua até hoje. “Eu já fazia esculturas sustentáveis e nem sabia, foram eles [os artesãos mais jovens] que me explicaram. E também não trabalho com madeira verde” e completou: “Já faço reflorestamento há mais de dez anos. No início das minhas peças, não tinha área para plantar, graças a Deus hoje eu tenho, e faço doação de mudas para alguns amigos que pedem”.

Mestre Petrônio foi um dos primeiros a aceitar participar do projeto - Foto: Museu da Ilha do Ferro

O mestre se referiu aos mais antigos como “dinossauros” ao falar da resistência em aderir ao projeto. “Com o passar dos tempos, surgiram novos artesãos e essa juventude sentou conosco e explicou a situação. Os mais velhos não quiseram participar no início, mas fui um dos primeiros que aceitaram e algumas mudas foram plantadas na minha chácara, inclusive”. Quando precisa de ajuda  ele “dá um grito e a meninada aparece”.

“Lutamos para que essa juventude traga de volta aquilo que nós, os dinossauros, tiramos da natureza e não reparamos. Fernando que foi um dos pioneiros, junto com os mestres Aberaldo e Toinho, não tinha essa consciência, mas ninguém sabia como era trabalhar sem machucar o meio ambiente. Mas hoje temos o dever de fazer da forma correta”. 

Legado do avô para a neta e às futuras gerações

O ano era 2014 e a jovem Camille Rodrigues, neta do mestre Fernando, foi desafiada pela família a continuar o trabalho que atravessa gerações. Ela começou com bancos em miniaturas que fizeram sucesso, ampliou as habilidades e atualmente, faz peças de até três metros. “A Ilha tem um significado importantíssimo para todos que vivem nela. É um local que inspira e respira a arte”.

Camille confeccionando sua peça em meio às madeiras - Foto: Arquivo Pessoal

A artesã explicou a importância da conscientização dos demais colegas e da comunidade em geral na execução do projeto. “A ilha precisa ser reflorestada devido a retirada de madeira dos últimos anos e que nunca foi replantada. O Reflorilha está mudando a mentalidade das pessoas daqui”.

Camille lembra que as ações são divididas em equipes: a que cuida das sementes e plantio, outra da manutenção das mudas, e no final, todos se unem para fazer o reflorestamento.

“É bonito ver que as crianças já se interessam em participar conosco. Então, já estamos passando esse legado adiante”.

Capacitações realizadas com os artesãos - Foto: Cortesia

Aprendendo com os artesãos

A tarefa de unir a comunidade em torno do reflorestamento da ilha coube a duas analistas do Sebrae Alagoas, Ana Madalena Sandes e Marina Gatto. A primeira trabalha com o conceito de sustentabilidade e a segunda diretamente com os artesãos na área de empreendedorismo.

Marina foi a primeira a observar, por trabalhar com a comunidade, a diminuição na quantidade de peças produzidas e, ao questionar os artesãos, descobriu a problemática da falta de matéria-prima.

Marina Gatto e Ana Madalena Sandes precisaram conquistar a confiança dos artesãos - Foto: Marcos Filipe Sousa

“Eles já sabiam que faltava madeira, mas não tinha consciência do que fazer para reverter essa situação. Entre 2019 e 2022 uma grande área foi devastada devido à extração, mas também à urbanização da ilha. Hoje, o local se tornou um ponto turístico e movimenta a economia de Pão de Açúcar”, detalhou a analista. 

Assim como os escultores passam horas, e até dias, para fazer uma peça, as analistas precisaram das mesmas habilidades e paciência para conquistar a confiança dos artesãos: “A situação atual é diferente de um ano atrás. Tivemos dificuldade, pois achavam que estávamos lá para fiscalizá-los, então foi um trabalho de conquista e muita conversa para que hoje, o tema do reflorestamento e o cuidado com o ecossistema da ilha seja algo natural do cotidiano deles”.

O primeiro passo foi montar a associação. “O objetivo é fazer com que o tema da sustentabilidade chegue a toda comunidade. Entre eles existia uma desagregação, cada um vivia em seu quadrado, sem trabalhar juntos. E agora se relacionam, fazem as atividades juntos e principalmente, com o aprendizado, passam para as novas gerações”.

A analista lembra que no avançar do projeto, o Sebrae deve se retirar e os artesãos continuarão as ações. “Nosso foco é a orientação junto com os nossos parceiros para que a comunidade siga com seus próprios passos”. 

Com a estruturação da associação foi preciso começar as capacitações para que o grupo entendesse o sentido da sustentabilidade. Coube a Ana Madalena Sandes explicar aos artesãos sobre o conceito. “Ela está ligada a três pilares: o ambiental, social e econômico. E cada um desses recursos precisa ficar disponível para as próximas gerações”. 

Entre erros e acertos, o projeto foi tomando forma - Foto: Cortesia

Junto aos escultores, as analistas iniciaram um mapeamento da quantidade de madeira usada nas peças, quais espécies mais usadas e de quais localidades estavam sendo retiradas. “Nunca tínhamos trabalhado com uma ação deste tipo, acho que é algo inédito no Brasil, e para isso, a nossa fonte de informação era a própria comunidade”.

Entre acertos e erros, o projeto foi tomando forma, como brincou Ana Madalena. “Primeiro, trouxemos mudas de plantas que não eram típicas da região, depois plantamos em áreas de beira rio, e descobrimos em seguida que após o plantio não poderiam ser retiradas devido a localidade de preservação”.

O IMA entrou no projeto e o estudo ecológico da ilha ficou sob sua responsabilidade e a Chesf doou as mudas. “Com a evolução do Reflorilha, os mais velhos foram se aproximando. Um dos escultores que resistia no início, atualmente cultiva mudas, e já preparou 150 de cedro, uma espécie difícil de trabalhar, para doar”, recordou Ana.

Conscientização passa pela legalização da extração da madeira

Para saber quais espécies seriam plantadas, o Sebrae e os artesãos contaram com a parceria do Instituto do Meio Ambiente (IMA) que mapeou quais árvores eram mais utilizadas na elaboração das peças. Contudo, para isso, era preciso regulamentar a atividade extrativista, como explicou a engenheira ambiental do órgão, Isabel Nepomuceno.

“Precisávamos garantir que as práticas estivessem de acordo com as legislações ambientais vigentes, especialmente no que diz respeito ao corte de espécies nativas”, explicou.

Após esse primeiro momento, chegou-se às seguintes árvores: pereiro, aroeira, umburana de cheiro, braúna, mulungu e craibeira. “Pela vasta utilização dessas espécies, espera-se que estas estejam sofrendo maiores pressões no ambiente”.

Espécies mais utilizadas pelos artesãos na Ilha do Ferro - Arte: Marcos Filipe Sousa

A engenheira explicou a importância da interatividade entre o conhecimento dos nativos e a equipe do IMA. 

“A integração entre economia e sustentabilidade é fundamental para o sucesso desse tipo de projeto, especialmente quando se valoriza o conhecimento tradicional associado a essas atividades. Por um lado, o artesanato baseado em madeira, com técnicas e saberes ancestrais, é uma fonte importante de renda e subsistência para a comunidade extrativista, contribuindo significativamente para a economia local. Por outro lado, é crucial garantir que essa atividade seja realizada de forma sustentável, preservando os recursos naturais para as gerações futuras”, disse.

Graças a essa transversalidade nas ações foi possível implementar práticas de manejo florestal sustentável, respeitando e incorporando o conhecimento tradicional, educação ambiental e apoio técnico aos artesãos para o uso consciente e responsável dos recursos naturais.

Isabel Nepomuceno ajudou no mapeamento da flora na ilha - Foto: Cortesia

Para ela, o projeto pode ajudar na recuperação do meio ambiente da Ilha do Ferro de várias maneiras. “Além de regularizar a atividade extrativista, o projeto promove ações de reflorestamento e recuperação de áreas degradadas, incentivando o plantio de espécies nativas utilizadas pelos artesãos. Trazendo assim, a conscientização ambiental e a valorização da biodiversidade por parte deles e da comunidade em geral, através de ações de educação ambiental para a conservação a longo prazo do local”.

Futuro vem com o selo de Sustentabilidade

Quando conversamos com os artesãos da Ilha do Ferro, o principal desejo deles é ver novamente a região arborizada, e com isso, conseguir o Selo Verde em suas obras. Trata-se de uma certificação para produtos, serviços e empresas que produzem de forma sustentável, ou seja, com ações de menor impacto ambiental e socialmente responsáveis.

O principal objetivo do selo é chancelar empresas e fabricantes que adotam práticas, medidas e procedimentos socioambientais responsáveis. Ou seja, é uma garantia de que a empresa mantém um sistema de gestão ambiental, que garante a proteção dos recursos naturais e a saúde humana.

“A demanda do mercado está cada vez maior. Atualmente, os compradores perguntam a origem da matéria-prima, porque serão cobrados sobre isso no momento da revenda.”, detalhou Marina Gatto. “Além disso, aumenta-se o valor agregado ao produto com a certificação”.

Ela lembrou que o Reflorilha é um trabalho piloto que deve ser reproduzido em outras partes do estado. “A falta de matérias-primas, como barro, fibras e madeira é uma realidade. Foram séculos de retirada sem nenhuma compensação. É preciso ter um novo olhar e a Ilha do Ferro foi escolhida por estar em uma situação mais crítica. Ela se tornará um exemplo de como economia e sustentabilidade podem caminhar juntas”.