ONG alemã que opera no Brasil faz transações milionárias com uma das aves mais raras do mundo
Folha
Uma ONG fundada por um ex-segurança de casas noturnas na Alemanha que faz transações com ararinhas-azuis —em pelo menos um caso, em valores estimados em € 75 mil (R$ 470 mil) por espécime— continua funcionando no Brasil um ano depois do fim do contrato que tinha com o governo federal.
Uma investigação de dez meses realizada pela Folha em conjunto com o jornal alemão Süddeutsche Zeitung (SZ) constatou a falta de transparência com a qual a ONG alemã ACTP (Associação para a Conservação de Papagaios Ameaçados) e seus funcionários operam no Brasil.
A ACTP, uma organização alemã fundada em 2006, chegou a ter posse de 90% das ararinhas-azuis (Cyanopsitta spixii) no planeta —uma das aves mais ameaçadas do mundo, cujo único habitat natural é a caatinga brasileira e que já foi considerada extinta na natureza. Hoje, 75% dos pássaros de que se tem registro ainda estão sob controle da ONG alemã.
A ACTP e seu fundador, o alemão Martin Guth, são conhecidos pela reputação controversa. Em 2018, uma reportagem do jornal britânico The Guardian já levantava suspeitas sobre a forma como Guth adquiriu tantos espécimes —incluindo aves raras australianas e caribenhas, além da ararinha-azul.
Em longa carta ao SZ, os advogados de Martin Guth e da ACTP dizem que tanto o fundador quanto a associação "sempre obedeceram as leis em vigor" e que não há "qualquer indício concreto de irregularidade".
Afirmam ainda que todas as movimentações de ararinhas-azuis realizadas pela ACTP tiveram como único objetivo a conservação da espécie. Sobre seu trabalho no Brasil, a ACTP disse que sempre obedeceu acordos com as autoridades brasileiras.
Em maio de 2024, depois de anos de problemas, o governo federal tomou a decisão de encerrar o acordo de cooperação que mantinha com a ACTP. A responsabilidade pelo trabalho de reintrodução em Curaçá (BA) foi então assumida pela Blue Sky, empresa brasileira parceira da ONG alemã.
O motivo para o fim do acordo foi a constatação, segundo o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, órgão do Ministério do Meio Ambiente), de que a ACTP havia realizado uma "transação comercial fora do escopo do trabalho de conservação" ao enviar 26 ararinhas-azuis para um zoológico na Índia de propriedade de um bilionário do setor petroquímico.
Mas já havia registros de transações com ararinhas realizadas pela ONG antes disso. Em um processo controverso, as autoridades ambientais da Alemanha autorizaram, de 2021 a 2023, que a ACTP vendesse 57 espécimes da ave a criadores privados na Europa. A ONG afirma que se tratavam de aves não adequadas para o programa de reprodução.
Não se sabe quantas dessas aves de fato foram vendidas, mas, em pelo menos uma transação, quatro foram enviadas à Bélgica —e a ACTP emitiu uma fatura cobrando € 75 mil por ararinha, ou seja, € 300 mil (R$ 1,9 milhão), de acordo com o governo alemão. O Brasil não foi consultado.
Em outro caso, a ACTP enviou duas aves a um zoológico em Singapura como parte de um plano de financiamento da soltura das ararinhas no Brasil —quatro chamados "zoológicos embaixadores" doariam US$ 400 mil (R$ 2,2 milhões) por ano ao projeto e, em troca, poderiam receber espécimes.
Por meio da Blue Sky, a ACTP opera o único projeto de reintrodução à natureza da ararinha-azul que existe, na fazenda Concórdia, em Curaçá. A empresa é comandada por Ugo Vercillo, ex-servidor do ICMBio envolvido nas negociações entre a ACTP e o governo brasileiro e que deixou o serviço público para fundar a Blue Sky.
Em entrevista à Folha, Vercillo disse que não há relação contratual entre Blue Sky e ACTP —apesar de um funcionário da ONG alemã coordenar o trabalho do criadouro administrado pela empresa brasileira.
Segundo o próprio Vercillo, a Blue Sky foi fundada por ele no Brasil por incentivo de pessoas próximas à ACTP depois do seu licenciamento como servidor público, em dezembro de 2021 —o biólogo seria exonerado em definitivo, a pedido, em 2024.
De acordo com ele, a Controladoria-Geral da União analisou seu pedido de licença, que detalhava sua intenção de trabalhar com a conservação da ararinha-azul, e aprovou seu afastamento. O ICMBio não comentou o caso, a não ser para dizer que a corregedoria do órgão ambiental apura possível conflito de interesses no processo de licenciamento de Vercillo.
Além disso, o MPF (Ministério Público Federal) na Bahia confirmou à Folha que há uma investigação sigilosa em curso que envolve denúncias feitas pela ONG Renctas (Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres) contra a Blue Sky e a ACTP.
Duas denúncias anteriores contra Vercillo e a Blue Sky feitas por essa ONG, que tratavam da compra da fazenda Concórdia e de possível conflito de interesse, já foram arquivadas pelo MPF sem que qualquer irregularidade tenha sido identificada. Vercillo afirma desconhecer quaisquer outros inquéritos.
Mesmo após o fim do contrato com o Brasil, a ACTP ainda tem permissão do ICMBio de trabalhar no local e de realizar reintroduções de aves na natureza, que continuam ocorrendo com sucesso: em 2022, 20 ararinhas-azuis foram soltas, e o ICMBio autorizou a reintrodução de outras 20, que deve acontecer ainda em 2025.
No momento, o Brasil não tem condição de conduzir um programa de reintrodução da ararinha-azul sem a ajuda da ACTP. A única alternativa são os 27 espécimes que vivem hoje no Zoológico de São Paulo em centro de reprodução —mas, como a população é muito pequena, o programa ainda está longe de poder sustentar solturas na natureza.
Documentos do ICMBio mostram que a ACTP descumpriu uma série de prazos de entrega de relatórios técnicos e outras exigências do acordo de cooperação. Segundo uma analista do órgão federal, o trabalho com o chamado consultor genealógico da ACTP em Curaçá, o sul-africano Cromwell Purchase, "é cada vez mais dificultoso".
Purchase teria acusado a coordenadora do programa de aves do ICMBio, Priscilla do Amaral, de ser "a principal adversária" do projeto de conservação e deu a entender que o trabalho com o governo brasileiro seria mais fácil se ela fosse removida do cargo que ocupa.
Em resposta à Folha, Purchase disse que a reportagem trabalha a mando do governo brasileiro com o objetivo de atacá-lo. Afirmou estar envolvido na conservação da ararinha-azul há 15 anos, "sempre guiado por princípios científicos", e acrescentou que "desentendimentos técnicos são naturais".
Negou ainda ter tentando remover Priscilla do cargo, mas disse que as ações da servidora "estão em contraste direto com as nossas de salvar a espécie".
A reportagem da Folha esteve na Bahia em dezembro de 2024 com a intenção de visitar o criadouro, mas não foi recebida pela Blue Sky, apesar de quatro tentativas. Em Curaçá, Purchase disse que uma visita seria impossível porque a segurança armada do criadouro estaria "em alerta máximo" devido a um boato de que poderia haver uma tentativa de roubo das ararinhas.
Enquanto isso, a fiscalização dos trabalhos da ACTP em Curaçá vem sendo realizada de maneira infrequente pelas autoridades brasileiras. Coordenadores do ICMBio dizem que esse papel cabe, entre outras instituições, à equipe do órgão em Juazeiro (BA), a cerca de 95 quilômetros de Curaçá.
Em entrevista à reportagem, entretanto, a coordenadora do ICMBio em Juazeiro, Cláudia Campos, disse que não fiscaliza a fazenda Concórdia, onde a ACTP atua, e que esse papel caberia à polícia e à autoridade ambiental do governo da Bahia, o Inema (Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos). Após meses de insistência e constante troca de emails, o Inema não respondeu as perguntas enviadas pela Folha