Uso de dados pessoais de saúde para publicidade se espalha em farmácias
UOL
Comprar um remédio sem fornecer o CPF ficará cada vez mais difícil. Farmácias de todos os portes estão apostando na exigência do número para armazenar o histórico de compras dos clientes.
Essas informações revelam dados de saúde e até de comportamento sexual, os mais protegidos pela LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) —ouça mais sobre esta reportagem no podcast UOL Prime.
O histórico de compras permite que as farmácias conheçam o comportamento dos clientes e usem as informações para estimular compras.
Isso é feito por meio do envio de email e SMS ou exibição de anúncios online, pagos pela indústrias farmacêutica e de beleza.
Pessoas que compram fraldas, por exemplo, podem ser classificadas como pais e passam a ver propaganda de fórmula de alimentação infantil nas suas redes sociais.
As farmácias, os anunciantes e as empresas de tecnologia envolvidas dizem que a operação segue a lei.
Mas, conforme revelou o UOL, a ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados) instaurou em fevereiro um processo de sanção contra a RaiaDrogasil, pioneira no uso do histórico de compras para vender anúncios.
O órgão, ligado ao Ministério da Justiça, viu indícios de que a rede realiza "perfilização comportamental a partir de dados pessoais sensíveis, sem o devido amparo legal, a fim de ofertar publicidade direcionada com contrapartida financeira".
A RaiaDrogasil afirma que 97% de suas vendas são identificadas com o CPF, permitindo o armazenamento do histórico de 50 milhões de pessoas —ponto de partida para a venda de publicidade.
Uma subsidiária da RaiaDrogasil é contratada por anunciantes, que escolhem qual público querem atingir usando as informações disponíveis no banco de dados da farmácia.
Os selecionados passam então a receber os anúncios no site e no app da farmácia, por email e SMS, e até em serviços do Google, como YouTube, e redes sociais, como Instagram e TikTok.
Operação de publicidade da RaiaDrogasil cresce
O número de anunciantes que usam os dados da rede de RaiaDrogasil subiu 40% em 2024, gerando um "aumento expressivo na receita anual", segundo a própria rede.
O modelo foi seguido pela Pague Menos, segunda maior rede de farmácias do país em número de lojas, que engloba Pague Menos e Extrafarma.
Também em 2024, a rede lançou a iniciativa Pague Menos Ads. O banco de dados contém o histórico de compras de 21 milhões de clientes. Em 92% das vendas, os clientes informam o CPF.
Pague Menos Ads é 100% baseado em dados. Com 92% da nossa base identificada e 21 milhões de clientes ativos, podemos direcionar anúncios de forma assertiva em diversos canais, como site, aplicativo, buscas patrocinadas e lojas, sempre focando quem tem histórico ou potencial de compra.
Renato Camargo
vice-presidente de clientes da Pague Menos, em entrevista à Exame
Farmácias menores também estão começando a montar suas próprias operações.
Em março, no Conexão Farma, um dos maiores congressos de farmácias do país, duas empresas de tecnologia apresentaram serviços de armazenamento do histórico de compras dos clientes, com foco em farmácias de médio e pequeno porte.
Uma delas é a Rock Encantech, que atende redes de farmácias de médio porte.
A orientação da empresa é que as farmácias consigam o CPF do cliente em pelo menos 70% das vendas, armazenando um volume determinado de dados para vender publicidade.
Um dos clientes é a Drogal. Procurada, a empresa não quis se pronunciar. A Rock Encantech diz seguir a legislação.
Já a empresa Triv.io oferece análises do histórico de compras para farmácias de pequeno porte, com cinco ou mais unidades, usando inteligência artificial.
O primeiro passo também é cobrar o CPF do cliente.
A tela usada pelo balconista na farmácia mostra qual é o percentual de clientes de quem obteve o CPF, e compara com o resultado obtido por outros colegas. O objetivo é estimular a competição.
O painel mostra também sugestões de outros produtos para o balconista indicar para o cliente, com base na análise do histórico de compras —inclusive remédios.
A indústria farmacêutica também pode pagar à farmácia para que um de seus produtos seja destacado na lista de sugestões. A Triv.io também diz respeitar a legislação.

De remédio para dor a vitamina
O uso do histórico de compras para criar perfis dos clientes e enviar propaganda online é chamado de "retail media" (mídia do varejo).
É considerado uma nova fronteira da publicidade digital, já que o público é selecionado a partir de compras que fez —o que mostra que tem interesse real de adquirir o produto, além de poder de compra.
Já a publicidade tradicional é exibida para o público em geral —uma campanha na TV, por exemplo. Ou para quem pode ter algum interesse no produto, mas não necessariamente poder de compra —quem busca por "Ferrari" na internet, por exemplo.
Grandes varejistas digitais, como a Amazon, têm operações de "retail media". Mas o caso das farmácias é particular, já que comercializam remédios e lidam com dados de saúde.
A operação da RaiaDrogasil, por exemplo, permite que o anunciante selecione "grupos de audiência" a partir dos dados de compra na farmácia.
É possível escolher pessoas que compraram um produto específico, incluindo remédios. E também selecionar determinadas características demográficas, como gênero e idade.
Os anúncios são exibidos em três modalidades diferentes.
Dentro da loja, em telões e cupons de desconto. No site e no app da loja, tanto em banners como em busca patrocinada. E também fora da farmácia, por email, SMS, redes sociais e serviços do Google.
Em seguida, é possível analisar se o público afetado pelos anúncios comprou os produtos. A RaiaDrogasil diz que toda a operação usa dados anonimizados.
Segundo a LGPD, dado anonimizado é aquele que não permite a associação, direta ou indireta, a um indivíduo.
Entre os anunciantes que usam os dados da RaiaDrogasil estão grandes fabricantes de medicamentos, vitaminas e produtos de beleza.
A Reckitt, que fabrica remédios e outros produtos de saúde, contratou o serviço para propagar um medicamento para dor, que pode ser comprado sem prescrição.
"Aumentou absurdamente a base de novos usuários" do remédio, disse Odilon Feitosa, head de ecommerce da Reckitt, em um podcast de marketing, publicado em 2024.
Primeiro, a empresa usou os dados da RaiaDrogasil para direcionar publicidade visando ampliar o número de consumidores do remédio.
"A gente tinha uma ambição de novos usuários para acontecer em seis meses, a gente passou de 60% dessa meta em um mês e meio de ação", disse Feitosa.
Em uma segunda etapa, a Reckitt buscou aumentar o valor que cada consumidor comprava do remédio (chamado de "ticket"), segundo relato do executivo da empresa no podcast.
O objetivo foi aumentar a frequência da compra, chamada pelo varejo de "recorrência".
[Os dados garantem] que a gente tá indo pelo caminho correto, senão vamos ajustar. (...) Vamos ajustar porque agora o foco é aumentar o tíquete, porque a gente já trouxe muitos usuários. Vamos mudar agora porque o foco agora é recorrência, porque (...) ele tem que voltar a comprar.
Odilon Feitosa
diretor de ecommerce da Reckitt, no podcast Marketing Future Today Cast
Procurada pelo UOL, a Reckitt afirmou que segue a LGPD e que "adota as melhores práticas do mercado para assegurar o uso responsável de informações em suas ações de marketing e publicidade".
A Cimed, fabricante de remédios, também contratou o serviço de publicidade da RaiaDrogasil para anunciar vitaminas.
Quero pessoas que compraram meu produto e deixaram de comprar. Quero pessoas que nunca compraram meu produto mas consomem a categoria [de vitamina]. Quero uma pessoa que tenha um hábito de consumo, porque tenho outro produto aqui que quero começar a botar para ele (...). Isso é muito rico.
Henrique Mendonça
gerente executivo de comunicação e mídia da Cimed, no podcast Marketing Future Today Cast
Ao UOL, a Cimed disse que "tais serviços [contratados do grupo RaiaDrogasil] não compreendem a disponibilização de quaisquer dados pessoais pelos parceiros à Cimed" e que "possui um programa de privacidade e proteção de dados sólido".