'Ordem era economizar': o que disse técnico preso após transplante com HIV

15 de outubro de 2024 às 08:01
Brasil

Foto: Reprodução

A polícia do Rio prendeu duas pessoas nesta segunda-feira (14) por suspeita de envolvimento nos casos de órgãos para transplante que infectaram com o vírus HIV seis pacientes receptores. Um sócio do laboratório que atestou a qualidade dos órgãos foi um dos presos.

Jornal Nacional teve acesso, com exclusividade, ao depoimento do outro detido. O técnico responsável pelos testes de amostras da central de transplantes.

Ivanilson Fernandes dos Santos é técnico de laboratório e era quem fazia os exames do PCS Lab Saleme nos casos de órgãos para transplante. Ele foi um dos presos nesta segunda-feira (14) pela polícia. O Jornal Nacional obteve com exclusividade o depoimento dele após a prisão.

Perguntado sobre o controle de qualidade da sorologia, Ivanilson disse que "até dezembro de 2023, realizava diariamente esse controle, que é necessário para evitar erros; que a partir do início do ano de 2024 o controle de qualidade passou a ser semanal e de responsabilidade da coordenadora Adriana Vargas".

A polícia, então, perguntou a Ivanilson qual a diferença entre fazer esse controle diariamente ou uma vez por semana. Ele respondeu que podem “ocorrem erros, pois os reagentes ficam degradados por permanecerem muito tempo na máquina analítica; que o controle é uma segurança da certeza do resultado e, por isso, deve ser diário”.

Infectados por HIV: JN tem acesso, com exclusividade, a depoimento de técnico responsável por testes de amostras da central de transplantes — Foto: Jornal Nacional/ Reprodução
1 de 2 Infectados por HIV: JN tem acesso, com exclusividade, a depoimento de técnico responsável por testes de amostras da central de transplantes — Foto: Jornal Nacional/ Reprodução

Infectados por HIV: JN tem acesso, com exclusividade, a depoimento de técnico responsável por testes de amostras da central de transplantes — Foto: Jornal Nacional/ Reprodução

O técnico de laboratório disse ainda que acredita ter recebido a ordem de não fazer mais testes diários "por questão de economia dos kits de reagentes, que são muito caros". Ele disse ainda à polícia que “acreditava que algo de errado ocorreria, e por isso estava pensando em se desligar, mas na última sexta-feira foi desligado, recebendo aviso prévio”.

Dando mais detalhes sobre a ordem que recebeu, Ivanilson contou que “quando houve mudança do controle de qualidade, Adriana Vargas disse que a ordem era para economizar porque estava tendo muitos gastos”.

Em um grupo de mensagens formado por pessoas que trabalhavam no laboratório, Adriana disse na semana passada:

"Pessoal, o negócio foi feio. Me parece que um dos nossos técnicos, em janeiro e maio, liberou um resultado da central transplantadora errado, onde está dando no repórter contaminação de cinco pacientes. Estou apavorada. Me parece que esse mesmo técnico fez outra liberação em maio também. Não sei ainda tudo do ocorrido".

Jornal Nacional tentou contato várias vezes com a coordenadora do laboratório, Adriana Vargas.

"As informações iniciais colhidas até o momento dão conta de que houve uma falha operacional de controle de qualidade nos testes aplicados ao diagnóstico de HIV. E tudo isso com o objetivo de obter lucro nessa questão dessas análises”, afirmou Felipe Curi, secretário de Polícia Civil do Rio de Janeiro.

Outra pessoa presa nesta segunda-feira (14) foi o médico Walter Vieira. Ele é o responsável técnico e um dos sócios do laboratório PCS. Foi Walter Vieira quem assinou um dos laudos negativos de HIV, que liberou para transplantes órgãos infectados.

O médico disse à polícia que a culpa por um dos resultados errados seria de Cleber de Oliveira Santos, coordenador de biologia do laboratório, que deveria ter checado o equipamento onde foram feitos os testes. Cleber também teve a prisão decretada e está foragido.

Quanto ao segundo laudo com o falso negativo, o médico disse que o técnico Ivanilson simplesmente teria digitado errado o resultado. Walter Vieira disse ainda que o erro não teria sido conferido pela funcionária Jaqueline Bacellar, que assinou esse outro laudo.

Jaqueline também teve a prisão decretada nesta segunda-feira (14). Antes de saber da ordem da Justiça, ela conversou com o repórter Bruno Grubbert. Jaqueline disse que era uma funcionária burocrática do laboratório, e não biomédica, como consta no laudo. Disse também que uma assinatura dela armazenada no sistema foi usada indevidamente.

Repórter: Jaqueline, o que você fazia no laboratório?
Jaqueline Iris Bacellar de Assis: Eu fazia conferência de estoque, realizava pedido de insumos, preenchimento de planilhas de uma maneira geral no laboratório. Quando é feito o nosso acesso ao sistema, era solicitado uma rubrica, para enviar uma foto de uma rubrica nossa para constar no sistema.

O advogado de Jaqueline disse que na terça-feira (15) ela vai se apresentar na delegacia.

Na sede principal do PCS Saleme, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, os agentes tiveram que arrombar a porta com os pés. — Foto: Jornal Nacional/ Reprodução

Nesta segunda-feira (14), a polícia também fez buscas em vários endereços. Na sede principal do PCS Saleme, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, os agentes tiveram que arrombar a porta com os pés.

Além dos exames da Central de Transplantes no estado do Rio, o mesmo laboratório era responsável por atender outras dez unidades de saúde da rede estadual.

E, nesta segunda-feira (14), surgiu uma nova denúncia de um erro grave do PCS Saleme. Em 2023, horas depois do parto, Tatiane Andrade recebeu o resultado errado de HIV positivo. Não pôde amamentar a filha, que ficou internada por um mês recebendo os remédios do protocolo anti-HIV.

"Foi desesperador! Ficava pensando: 'Meu Deus, a minha filha foi tão planejada, que eu fiz todos os exames antes, durante, não aconteceu nada'. Era meu sonho amamentar, eu não podia amamentar a minha filha, secaram o meu leite", conta a dona de casa Tatiane Andrade.

Nesta segunda-feira (14), Tatiane foi até a delegacia denunciar o erro do laboratório.

"Do nada, eu vi a reportagem eu falei: 'Meu Deus, é o laboratório que fez o meu exame errado'. Aí eu fiquei em choque", diz.

A Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro reiterou que o laboratório PCS Saleme não faz mais exames para o estado; e que criou uma comissão multidisciplinar para acolher os pacientes afetados.

O laboratório PCS Saleme declarou que vai dar suporte médico e psicológico aos pacientes infectados assim que tiver acesso à identidade deles. Sobre o caso da Tatiane Andrade, o PCS Saleme afirmou que o terceiro teste deu o resultado correto.

A direção do Neomater, onde Tatiane teve a filha, declarou que o hospital ofereceu todos os esclarecimentos e acesso aos exames realizados, e que está à disposição para outros esclarecimentos.