Disposta a rebater Trump, Kamala Harris busca evitar ser ‘déja vu’ de Hillary Clinton

04 de agosto de 2024 às 09:09
Mundo

Foto: Nicole Craine/NYT

O Globo

Como contra-ataque, ele convidou quatro cidadãs para acompanhar o duelo com a adversária: três haviam acusado Bill Clinton de assédio e uma fora vítima de estupro, com o acusado defendido pela advogada que concorria para se tornar a primeira mulher a comandar a maior potência do planeta. No ano seguinte, a ex-secretária de Estado contou, no livro “Como eu perdi”, que “Donald literalmente respirava na minha nuca”. E se questionou: “Será que em vez de ter permanecido calma, sorrindo, não deveria ter dito, em alto e bom som: ‘Sai pra lá, sua aberração, fique longe de mim’”?

Oito anos depois, Trump, de 78 anos, anunciou no sábado que não irá debater com outra mulher, a vice-presidente Kamala Harris, 59, no dia 10 de setembro, na rede ABC, como combinado anteriormente com a campanha democrata quando o candidato era o presidente Joe Biden. Escreveu, em post em sua rede social, que topa um encontro seis dias antes, mas organizado pela direitista Fox, no estado decisivo da Pensilvânia, com dois âncoras por ele determinados, e em formato similar ao que enfrentou Hillary: com eleitores e podendo se movimentar pelo palco. A campanha de Kamala rejeitou as exigências e, em nota, afirmou que o ex-presidente está “assustado e correndo para os braços da Fox”.

Na terça-feira, em comício na Geórgia, a virtual candidata democrata, o desafiara a confirmar o debate anteriormente programado: “Donald, você fala inverdades sobre mim. Como diz o ditado, se tem algo a dizer, diga na minha cara!”. No dia seguinte, o republicano questionou a identidade racial da democrata em evento da Associação de Jornalistas Negros dos EUA (“Ela sempre se apresentou como indiana e, agora, por interesse eleitoral, se diz negra”) e foi duramente criticado, inclusive no próprio partido, pela acusação mentirosa e racista.

Língua solta como trunfo

Uma das coordenadoras de imprensa da campanha de Hillary em 2016, a consultora política Olivia Lapeyrolerie, que é negra, revelou ao jornal USA Today na semana passada que as declarações misóginas de Trump à época abalaram a campanha da democrata, especialmente mulheres em posições de comando. “Espero que a equipe de Kamala esteja preparada para o rojão”, disse. Mas, desta vez, foi a campanha republicana que mais se irritou com a “falha grave”, como qualificada reservadamente ao site Politico, de Trump.

A estratégia da direita é bater na vice em imigração e economia, não em graduar sua negritude. Entre os democratas, crê-se que a “língua solta” de Trump pode ser agora um trunfo. E que a familiaridade dos americanos nos últimos oito anos com o porão das redes sociais, somada à reação imediata e dura de Kamala aos insultos, evitarão a repetição do “efeito Hillary”.

As pesquisas parecem lhes dar razão. Na Economist/YouGov de quinta-feira, Trump é percebido de modo negativo por 53% dos entrevistados, Kamala por 51%. E na da Bloomberg/Morning Consult de quarta, a democrata passou à frente em Wisconsin e Nevada, empatou na Geórgia e disparou no Michigan, com vantagem de 11 pontos. Os dois últimos contam com número crucial de eleitoras negras.

Hillary, 76, foi umas das primeiras defensoras da candidatura Kamala, após Biden enterrar o projeto da reeleição. Postou foto das duas em evento de campanha em São Francisco em 2016. Se encontrou com “minha amiga” na quinta, na cerimônia de adeus para a deputada texana e negra Sheila Jackson Lee, que morreu aos 74 anos no último dia 19. E em texto publicado no New York Times, ela revê sua trajetória, não chega a responder à pergunta que fez a si mesma em 2017, mas enfatiza que “a filha de imigrantes, negra e descendente de indianos tem condições de fazer o que estive próxima de alcançar”.

Se a leitura fez sucesso no partido, também foi inevitável não encarar o retrovisor com um mix de orgulho e angústia. Em 2008, quando Hillary perdeu as prévias para Obama, então futuro primeiro presidente negro dos EUA, a disputa foi marcada por declarações como a do então senador de que sua concorrente era “agradável o suficiente”. E em 2016, quando era a favorita nas pesquisas até a boca de urna, abriu quase 3 milhões de vantagem no voto popular, mas perdeu no Colégio Eleitoral.

De erros logísticos, como a decisão de não fazer um comício sequer no Wisconsin (onde perdeu por menos de 1% dos votos), à misoginia em estados com muitos eleitores brancos sem diploma universitário, buscaram-se razões para a derrota que fossem além do sentimento antiglobalização encarnado pelo trumpismo. Agora, os democratas procuram lições que a campanha de Kamala pode tirar dos fracassos de Hillary.

— A sensação de déja vu faz sentido, mas Kamala não traz a bagagem política dos Clinton. E Trump, de lá pra cá, foi condenado por assédio sexual (contra a jornalista E. Jean Carroll), sofreu dois processos de impeachment e protagonizou o negacionismo antidemocrático após a derrota de 2020. Sua exposição, por Kamala, como desqualificado para a Presidência, tende a ser mais efetiva do que a feita por Hillary — diz o sociólogo Vincent Huntchings.

Posição mais efetiva

Também não escapa um detalhe na biografia das duas estudiosas da Lei: se uma se tornou defensora, a outra virou promotora pública. Para Kamala, partir para o ataque se traduziu, neste primeiro momento , em tirar dos conservadores o monopólio da defesa das liberdades individuais, enfatizando o direito ao aborto caçado pela Suprema Corte de maioria conservadora por obra de Trump.

E em apresentar o outro lado como um escrete de figuras “estranhas”, entre eles o senador e candidato a vice J. D. Vance, e “velhas” como o ex-presidente, incapaz de entender o conceito de birracialidade, quase a “aberração” que Hillary pensou em dizer em Sant Louis. Os republicanos, por sua vez, aguardam um passo em falso da democrata similar ao da ex-secretária de Estado em 2016, quando ela confundiu candidato com eleitores e afirmou que “cerca de metade dos apoiadores de Trump são deploráveis”.

A direita concorda que a disposição de Kamala para a briga já transformou a corrida, com a militância democrata eletrizada e disposta a votar, crucial quando o voto não é obrigatório. Também aguardam o anúncio de seu vice nos próximos dias, que deve embalar ainda mais sua candidatura rumo à Convenção Democrata. Mas argumentam que o resultado será decidido por independentes e moderados, sensibilizados por feitos do governo, como a histórica troca de presos americanos e russos, mas ainda assustados com o recorde de entrada de imigrantes em situação irregular no país e revoltados com o aumento do custo de vida.

Fato é que a combinação da máquina de doadores dos Clinton à ligação histórica da candidata com o Vale do Silício assusta. Quando disputou as primárias democratas em 2020, Kamala recebeu polpudas doações de AppleGoogleMeta, Microsoft e Amazon. Na quarta, mais de 100 investidores de capital de risco anunciaram o apoio à democrata, com direito a site exclusivo para doações. E se, por um lado, as enfrentou quando advogada-geral da Califórnia ao punir “excessos” — criminalizou o bulling digital e deu proteção legal a motoristas de aplicativo —, é criticada pela esquerda do partido por temer o afrouxamento das regulações impostas ao setor por Biden.

— Como as movimentações em pouco mais de uma semana atestam, estamos em um mundo mais dinâmico e veloz do que o de 2016, o que favorece Kamala. Mas é difícil cravar que ela está em situação mais confortável de que a de Hillary em 2016, quando liderava as pesquisas, em uma disputa em tudo inédita na História americana — diz Huntchings.