Por que uso de armas da Coreia do Norte pela Rússia na Ucrânia preocupa - BBC News Brasil

10 de maio de 2024 às 10:28
MUNDO

Este destroço de míssil de aparência incomum continha muitas pistas

BBC Brasil

No dia 2 de janeiro, a inspetora de armas ucraniana Khrystyna Kimachuk recebeu a notícia de que um míssil de aspecto incomum havia atingido um edifício na cidade de Kharkiv. Ela começou a ligar para seus contatos nas Forças Armadas da Ucrânia, desesperada para colocar as mãos no artefato.

Em uma semana, os destroços estavam espalhados bem na sua frente em um local seguro na capital Kiev.

Ela começou desmontando e fotografando cada peça, inclusive os parafusos e os chips de computador, que eram menores que suas unhas. Ela percebeu quase de cara que não se tratava de um míssil russo, mas o desafio que ela tinha era provar isso.

Em meio à confusão de fios e pedaços de metal, Kimachuk avistou uma pequena letra do alfabeto coreano. E, na sequência, se deparou com um detalhe mais revelador.

O número 112 estava estampado em partes do projétil. 112 corresponde ao ano de 2023 no calendário norte-coreano. Ela se deu conta de que estava diante da primeira evidência concreta de que armas da Coreia do Norte estavam sendo usadas para atacar seu país.

"Ouvimos dizer que eles haviam enviado algumas armas para a Rússia, mas pude ver, tocar e investigar (o míssil), de uma forma que ninguém havia sido capaz de fazer antes. Foi muito emocionante", ela me disse por telefone de Kiev.

Desde então, os militares ucranianos afirmam que dezenas de mísseis norte-coreanos foram disparados pela Rússia contra seu território. Eles mataram pelo menos 24 pessoas e feriram mais de 70.

Apesar de todo debate recente sobre a suposta preparação do líder norte-coreano, Kim Jong Un, para começar uma guerra nuclear, a ameaça mais imediata é agora a capacidade da Coreia do Norte de fomentar as guerras existentes — e alimentar a instabilidade global.

Kimachuk trabalha para a Conflict Armament Research (CAR), uma organização que recupera armas utilizadas na guerra, para descobrir como foram fabricadas. Mas foi só depois de ela terminar de fotografar os destroços do míssil, e de sua equipe analisar suas centenas de componentes, que veio a revelação mais impressionante.

O míssil estava repleto de tecnologia de ponta estrangeira. A maioria das peças eletrônicas havia sido fabricada nos EUA e na Europa nos últimos anos.

Havia até um chip de computador americano fabricado recentemente, em março de 2023. Isso significava que a Coreia do Norte havia obtido ilicitamente componentes vitais para armas, levado estes componentes secretamente para o país, montado o míssil e enviado, também secretamente, para a Rússia, onde foi então transportado para a linha de frente de combate e disparado — tudo isso em questão de meses.

"Esta foi a maior surpresa: apesar de estar sob severas sanções há quase duas décadas, a Coreia do Norte ainda consegue colocar as mãos em tudo o que precisa para fabricar suas armas, e com uma velocidade extraordinária", diz Damien Spleeters, vice-diretor da CAR.

Infográfico mostrando as evidências em destroços do míssil

Joseph Byrne, especialista em Coreia do Norte do think tank (centro de pesquisa e debates) Royal United Services Institute (Rusi), com sede em Londres, ficou igualmente chocado.

“Nunca pensei que veria mísseis balísticos norte-coreanos serem usados ​​para matar pessoas em solo europeu”, diz ele.

Byrne e a sua equipe têm monitorado o envio de armas norte-coreanas para a Rússia desde que Kim Jong Un se encontrou com seu homólogo russoVladimir Putin, em setembro do ano passado, na Rússia, para fechar um suposto acordo de armas.

Por meio de imagens de satélite, eles conseguiram observar quatro navios de carga russos fazendo viagens de ida e volta entre a Coreia do Norte e um porto militar russo, carregados com centenas de contêineres.

No total, o Rusi estima que tenham sido enviados 7 mil contêineres, com mais de um milhão de cartuchos de munição e foguetes 'grad' — do tipo que pode ser disparado de caminhões. O levantamento deles é respaldado por informações dos EUA, do Reino Unido e da Coreia do Sul, embora a Rússia e a Coreia do Norte tenham negado a transação.

Mapa mostrando embarque e desembarque de carga em navio

“Estes projéteis e foguetes são alguns dos itens mais procurados no mundo hoje, e estão permitindo que a Rússia continue atacando cidades ucranianas, num momento em que os EUA e a Europa hesitam sobre com que armas contribuir”, observa Byrne.

Comprando e disparando

Mas é a chegada de mísseis balísticos ao campo de batalha que mais preocupa Byrne e seus colegas, em virtude do que revelam sobre o programa de armas da Coreia do Norte.

Desde a década de 1980, a Coreia do Norte vende suas armas para o exterior, principalmente para países do Norte da África e do Oriente Médio, incluindo a Líbia, a Síria e o Irã.

Os armamentos tendem a ser mísseis antigos, no estilo soviético, com uma má reputação. Há evidências de que os combatentes do Hamas provavelmente usaram alguns lança-granadas antigos de Pyongyang em seu ataque de 7 de outubro do ano passado.

Mas o míssil disparado em 2 de janeiro, que Kimachuk desmontou, era aparentemente o míssil de curto alcance mais sofisticado de Pyongyang — o Hwasong 11 — capaz de viajar até 700 km.

Embora os ucranianos tenham minimizado sua precisão, Jeffrey Lewis, especialista em armas norte-coreanas e não-proliferação do Instituto Middlebury de Estudos Internacionais, diz que não parece ser muito pior do que os mísseis russos.

A vantagem destes mísseis é que são extremamente baratos, explica Lewis. Isso significa que você pode comprar mais e disparar mais, na esperança de sobrecarregar as defesas aéreas, que é exatamente o que os russos parecem estar fazendo.